Profundidade

Capítulo IV - Profundidade e Totalidade

64. Níveis

Os diferentes níveis do real podem ser percorridos segundo uma ordem vertical ou segundo uma ordem horizontal.

A dialética tem por origem o ato de liberdade pelo qual o eu se constitui a si mesmo por participação no absoluto. A dialética enumera as condições mesmas desta participação e seus efeitos. Pode-se dizer que esta caminhada supõe, de um lado, um intervalo sem o qual não haveria nada, nem mesmo absoluto, pois o absoluto é sempre o absoluto de um relativo; e, de outro lado, uma realidade que preenche este intervalo e pela qual o absoluto responde, por uma presença complementar, ao ato imperfeito que se destaca dele e seria sozinho incapaz de se sustentar. (O que se exprime dizendo que o abstrato não tem existência separada.) Todavia não se poderá desconhecer que o intervalo, o ato que o cava, e o dado mesmo que o preenche não têm existência senão no absoluto. O problema essencial da dialética será descrever a maneira pela qual cada ato particular evoca certo dado, e a maneira pela qual se produz seu ajustamento. A dialética consiste inteiramente na descrição das correspondências. Estas correspondências se produzem segundo uma ordem vertical e segundo uma ordem horizontal: na ordem vertical, elas nos permitem descer do absoluto até as formas mais delicadas do sensível (esta ordem poderá ser percorrida nos dois sentidos); na ordem horizontal, elas nos permitem ver como, em todos os níveis da escala, as formas particulares da realidade são correlativas e complementares umas das outras, no interior de uma totalidade da qual elas prosseguem e renovam indefinidamente a análise, mas sem conseguir jamais esgotá-la.

65. Percepção

A percepção me estabelece no real, bem longe de me constranger a sair de mim mesmo para atingi-lo.

Pode-se considerar o objeto ora como a realidade, tal como ela é anteriormente a todas as perspectivas particulares que podemos tomar sobre ela, como sua fonte ou seu foco (não que então tenhamos a ver com a coisa em si, mas somente, visto que o objeto subsiste como objeto, com uma perspectiva em geral não ainda particularizada), ou como a soma de todas as perspectivas atuais ou possíveis que se tomará jamais sobre ele. Mas sei bem que, na percepção, atingo um objeto real, nunca confundo o objeto com a percepção que tenho dele, de tal modo que sempre implico a existência de um objeto cuja perspectiva nunca me dá senão um aspecto. É aí, por assim dizer, um dos pressupostos necessários ou um dos fatores inseparáveis da percepção ela mesma. Desde então, é o mesmo dizer que o objeto é a soma de todas as percepções possíveis e que ele é sua origem. Mas só esta segunda fórmula exprime a convergência de todas as percepções possíveis e testemunha que cada uma delas é uma participação na qual o objeto, revelando-me sua presença inteira, me dá uma parte de si mesmo, precisamente aquela pela qual coincido com ele na representação mesma que tenho dele. A percepção assim me estabelece no real, em vez de me obrigar a sair de mim mesmo para tentar atingi-lo. Não passo da perspectiva que tenho sobre o objeto ao objeto ele mesmo, mas envolvo o objeto numa perspectiva que me descobre somente um aspecto dele. Com mais razão, não projeto fora de mim esta perspectiva ela mesma, da qual sei bem que ela não me dá o objeto ele mesmo, mas somente uma vista parcial que posso tomar sobre ele, como viu H. Bergson no imortal primeiro capítulo de Matéria e memória.

66. Lembrança

A lembrança é à percepção o que a percepção é ao objeto.

Não comparo, não confronto o objeto com a percepção. Mas é preciso que eu os distinga e é mesmo por isso que o percebo. A perspectiva que tomo sobre ele só é possível graças à distância que, no espaço, separa precisamente este objeto de meu corpo. O intervalo não poderá portanto jamais ser preenchido. Mas há outro intervalo que permite compreender melhor a distinção entre o ato do conhecimento e seu objeto, porque, embora este intervalo seja ele mesmo intransponível, ele me permite todavia representar o objeto do conhecimento independentemente do ato mesmo pelo qual o conheço: é o intervalo que separa um acontecimento que vivi outrora no passado, do ato pelo qual o relembro hoje. Este ato será sempre inadequado a este acontecimento, ele nunca nos representará senão alguns aspectos. Mas existe todavia uma coincidência real entre o acontecimento no momento em que o percebi e a lembrança que conservei dele. Esta coincidência tem lugar na percepção mesma, que, como observa ainda Bergson, contém por assim dizer nela a lembrança antes que ela se tenha destacado. A coincidência aqui é inicial, em vez de ser rejeitada ao infinito, como quando procuro obtê-la somando umas às outras as diferentes percepções que posso ter dele. E há uma proporção entre a relação da percepção com o objeto e a relação da percepção com a lembrança. A percepção é aqui uma espécie de termo médio, que permite conjeturar a natureza do objeto.

67. Coincidência

A coincidência entre a operação e seu objeto se funda em sua correspondência mas não os identifica; a correspondência não pode ser a mesma para as diferentes operações do pensamento.

Quando se define a descoberta pela coincidência da operação e de seu objeto, é evidente que estes dois aspectos do ser coincidem mas não se identificam. Pode-se dizer somente que se correspondem, e esta correspondência não se realiza da mesma maneira em todos os casos. A originalidade de cada operação do espírito encontra sua expressão em seu modo de correspondência com seu objeto. É assim que, quando se trata de uma operação de conhecimento, parece que ela deve estreitar um objeto do qual ela só traça o contorno, ao passo que em toda operação que engaja nossa vontade, ela chama seu objeto à existência, como se seu conteúdo fosse determinado por sua forma mesma. Mas subsiste sempre um intervalo entre a operação e seu objeto, e é neste intervalo que se insere a consciência, considerada ao mesmo tempo em sua luz e no jogo de sua atividade livre.

68. Distinção

Subsiste uma distinção entre a percepção e o objeto percebido.

Quando se emprega a palavra percepção, parece que se tem a ver com um estado único, presente na consciência, à maneira de uma lembrança ou de uma ideia, e do qual se trata somente de descrever os caracteres por oposição aos dos outros estados. Mas esta descrição consegue dissimular, na maioria dos psicólogos, o papel desempenhado pela atividade do espírito, enquanto que inversamente o idealismo filosófico tende a reduzir ou absorver todo seu conteúdo. É preciso portanto distinguir o percebente e o percebido, mas o difícil é sem dúvida mostrar como cada ato de percepção prepara um modo de apreensão destinado a receber tal conteúdo, problema que desencorajou até aqui os esforços da reflexão, de tal modo que se preferiu admitir ora que a determinação deste ato provinha unicamente de seu conteúdo, ora que era ele que determinava um conteúdo primitivamente indiferenciado. Mas importa observar que se, de um lado, há no ato uma potência pela qual ele se revela capaz de apreender os conteúdos mais variados, e se há em cada conteúdo uma riqueza interna que escapará sempre à operação, há todavia, no ponto onde o encontro se produz, certa especificidade da operação que está em relação com uma especificidade do conteúdo, visto que não há objeto que não responda a uma necessidade ou a uma falta, ou mais justamente ainda a uma virtualidade que se atualiza desde que ele é dado. A passagem ao ato exprime a operação pela qual nosso ser se constitui, mas que é só uma operação de participação, e que não podemos acabar nós mesmos, isto é, que só nos eleva acima da pura possibilidade e só nos inscreve nós mesmos no real por este objeto do qual ela evoca e sofre a presença, e que lhe dá o conteúdo que ela chama e que é incapaz de se dar.

69. Identificação

A percepção procura, sem conseguir, se identificar com seu objeto.

O artigo precedente mostra bastante claramente como a distinção e a correspondência da percepção e do percebido são efeitos da participação. Compreender-se-á facilmente o privilégio que parece possuir o ato da percepção em relação a seu conteúdo que lhe permanece sempre, até certo ponto, estranho. Ele se limita a apreendê-lo. Não pode nem construí-lo, nem esgotá-lo. Mas se esforça por isso. Seria aí, para nós, uma espécie de ideal do conhecimento, como se uma atenção bastante tensa pudesse fazer nascer sob nossos olhos o objeto ele mesmo numa alucinação verdadeira. Inversamente, o empirismo inclina para a tese de que a presença mesma do objeto se imporia de tal maneira à consciência que o ato mesmo da percepção pudesse de algum modo se abolir. Somente, o próprio da percepção é oscilar sem cessar entre seu ato e seu objeto, de tal modo que o ato ele mesmo parece superar o objeto que todavia o transborda numa espécie de circuito ininterrupto. Mas o maior erro que se pode cometer, depois de ter pensado que a percepção é um estado e desconhecido nela o ato do sujeito percebente, é pensar que o dado nela está só para exprimir sua limitação, e desconhecer que ele é também um dom pelo qual o conhecimento ele mesmo não cessa de se realizar e de se enriquecer.

70. Perspectiva

A coincidência e o desvio entre a percepção e o objeto se encontram bastante bem representados por este caráter da percepção de implicar uma perspectiva, e do objeto de ser o ponto de convergência de todas as perspectivas possíveis.

A percepção sendo sempre a percepção de um indivíduo supõe este indivíduo ele mesmo como centro da perspectiva na qual o objeto é apreendido. Tal é a razão pela qual a percepção parece sempre ter um caráter subjetivo, pelo qual parece que ela acrescenta ao objeto ele mesmo uma espécie de dimensão que exprime sua relação com o sujeito, e que ela parece ao mesmo tempo mais pobre do que o objeto, visto que o próprio de uma perspectiva é nos representar só uma face do objeto e esconder todas as outras (aqui pode-se notar que a descrição que fazemos da percepção é emprestada da representação visual do mundo, que nos fornece a origem e o modelo de todo conhecimento do universo exterior e das relações que ela implica entre o sujeito conhecedor e o objeto conhecido). Entretanto, o próprio do objeto é ser indiferente à perspectiva, mas ser ao mesmo tempo o ponto de convergência de todas. Este objeto aparece como infinitamente mais rico do que o conteúdo de cada perspectiva; mas encontra-se nele ao mesmo tempo tudo que estas perspectivas particulares nos permitem discernir nele por análise. Entretanto, tal objeto, que é estranho a toda perspectiva, é também estranho a toda percepção. Enquanto ele é uma coisa fora da consciência, não é possível nem representá-lo, nem pensá-lo. O esforço que faz o pensamento para atingi-lo no-lo entrega sob a forma da ideia. Mas para realizar a passagem da percepção à ideia, é preciso passar pelo intermediário da lembrança, que, destacando a percepção do objeto, nos põe em presença de um puro poder do espírito atualizado por uma experiência anterior e que pode doravante se exercer sem ter necessidade de recorrer a ela.

71. Memória

A lembrança implica uma coincidência ideal, mas um desvio evidente com a percepção: é neste desvio, e neste esforço para superá-lo, que reside o jogo da memória.

A lembrança é à percepção o que a percepção é ao objeto cf. Prop. LXVI acima. Pois do mesmo modo que o próprio da percepção é estreitar um objeto que todavia a supera, do mesmo modo que ela implica a presença deste objeto, o próprio da lembrança é se referir, não ao objeto, mas à percepção que tenho dele. Dizer que me lembro de um objeto é dizer que me lembro de tê-lo visto. Dizer que me lembro de um acontecimento é dizer que me lembro de tê-lo vivido. Tal é a significação do axioma célebre: só se lembra de si mesmo. Isso não vai todavia sem dificuldade: pois através da percepção, não é o ato percebente que procuro, é o objeto ou o acontecimento percebido. E visto que é preciso que todo ato tenha um conteúdo, é natural que eu esqueça o ato da percepção que desempenha somente o papel de mediador entre o ato da memória e a matéria da lembrança. Ora, do mesmo modo que o espaço separa o sujeito percebente do objeto percebido, o tempo separa ele mesmo a lembrança da percepção que ela evoca. É esta distância que faz a originalidade mesma da memória, que a torna infiel, que a obriga a procurar e a obter uma fidelidade sempre maior. Ela é uma perspectiva sobre a percepção como a percepção era ela mesma uma perspectiva sobre o objeto. Mas enquanto há uma presença do objeto na percepção, a memória supõe uma ausência da percepção que ela nunca conseguirá alcançar.

72. Destacamento

No momento em que a percepção se produzia, a lembrança coincidia realmente com ela, mas dela se destaca cada vez mais.

A correspondência da percepção e do objeto se produz no presente. Mas os dois termos não se recobrem, há no objeto um imenso pano de fundo que escapa à percepção ou que ela só contém potencialmente e que a análise põe em dia progressivamente. A percepção e a lembrança são ao contrário separadas por um intervalo de tempo que se acresce cada vez mais e que impede, parece, toda coincidência real. Todavia a relação da lembrança e da percepção, que parece a este respeito menos perfeita do que a relação da percepção ao objeto, possui em relação a ele uma incontestável vantagem. Pois há um momento em que a percepção e a lembrança não somente se recobrem, mas ainda se identificam: é o momento em que a percepção se produz e onde, como observou Bergson, a lembrança está presente nela sem ter-se ainda destacado. Então se encontra realizada esta unidade perfeita do conhecedor e do conhecido que a intuição tenta vãmente atingir nos outros domínios. É o momento em que o conhecedor e o conhecido não estão ainda distinguidos e que é todavia um momento do conhecimento, mas a respeito de um objeto do conhecimento e não a respeito de seu próprio conteúdo.

73. Riqueza

A lembrança é mais pobre e mais rica ao mesmo tempo do que a percepção, como a percepção é ela mesma mais pobre e mais rica do que o objeto.

A percepção é sempre mais pobre do que o objeto conhecido, o que não precisa ser demonstrado, visto que esta diferença de riqueza serve precisamente para distinguir a percepção de seu objeto. O objeto real é sempre uma infinidade atual e a percepção é só uma perspectiva que tomamos sobre ele. Mas esta perspectiva precisamente não é um puro recorte; ela possui um caráter original definido pelo centro mesmo de onde ela irradia. Ela acrescenta ao objeto o ponto de vista. Esta perspectiva não é somente um quadro abstrato e formal; ela é qualificada pelo passado da consciência, por nossa experiência anterior, e num certo sentido também por seu futuro, pelo desejo e pela espera. É o mesmo da lembrança em relação à percepção. Ela é mais pobre do que ela e não se deixará de dizer que nunca se lembra de todo seu passado. Mas ela é mais rica também, não somente porque ela acrescenta à percepção esta espécie de atmosfera inseparável de nossa consciência atual formada pela massa de acontecimentos que a separam de seu próprio passado, mas ainda porque ela encontra neste passado mesmo uma significação e mesmo uma riqueza que ela atualiza e das quais se pode dizer que superam singularmente o conteúdo frequentemente medíocre de uma percepção que terá em seguida em nós uma imensa repercussão. É aí a observação que está no fundo de todas as análises de Proust. Mas pode-se tirar desta consequência notável, é que este contato com o objeto de onde deriva a percepção é só um abalo, um choque, uma isca, destinados a produzir um movimento da consciência, a evocar nela potências que, à medida que se atualizam, acabam por viver de seu próprio jogo.

74. Intervalo

Há um intervalo entre a ideia e a representação concreta da qual cada uma supera a outra e a envolve.

A passagem da lembrança à ideia é mais delicada do que a passagem da percepção à lembrança. Pois a lembrança se distingue da percepção como a ausência se distingue da presença. Havia entre a percepção e seu objeto um intervalo espacial, como havia um intervalo temporal entre a percepção e a lembrança. A ideia ela mesma é estranha ao tempo como ao espaço: ela recebe igualmente uma aplicação em todos os instantes e em todos os lugares. Ela é uma operação que não tem por si mesma conteúdo sensível, ou mais exatamente que pode receber os conteúdos sensíveis mais diferentes. Por conseguinte, o intervalo entre a ideia e o objeto (ou a imagem) é bastante fácil de definir: é aquilo que é representado pela oposição das duas palavras concreto e abstrato. Notemos somente que há um parentesco mais estreito entre a ideia e a lembrança do que entre a ideia e a percepção, precisamente porque a lembrança, embora se ligando a um tempo determinado por sua matéria e a outro tempo por sua evocação, está assim arrancada do tempo — diz-se que ela se torna então uma imagem — e porque ela está à disposição do espírito que a modela a seu grado, lhe acrescenta e lhe subtrai, e se adapta assim a representações particulares que ela supõe ou que evoca. Ela nunca coincide com elas e pode-se dizer também, ora que ela é mais pobre do que elas (como um esquema ainda vazio que o sensível deverá preencher), então ela merece o nome de conceito, ora que ela é mais rica, como se ela encerrasse uma multiplicidade infinita de possíveis que as representações particulares, que ela subsume, limitam e procuram traduzir, mas sem conseguir esgotá-los.

75. Ideia

No grau mais baixo do conhecimento, há o objeto que é sua matéria; no cume do conhecimento, há a ideia que é sua perfeição; mas o conhecimento se move entre estes dois extremos sem conseguir alcançá-los.

Além da percepção há o objeto da percepção, e pode-se dizer, como se mostrou na teoria da perspectiva, que a percepção é em relação a ele um instrumento de análise. Tal é a razão pela qual, embora o objeto seja presente na percepção, a percepção nunca coincide com ele. Mas o conhecimento perfeito é o da ideia, na qual parece que o pensamento objetiva sua própria operação. Somente esta objetivação nunca pode ser acabada. Ela representa todavia o ideal do conhecimento. Este se move no entre-dois que separa o objeto que lhe escapa por destinação, da ideia da qual ela nunca acaba de tomar posse. Se esta riqueza infinita da ideia nos tornasse toda inteira presente, a percepção seria dela só uma limitação. O objeto exprime na linguagem da exterioridade a mesma totalidade e a mesma suficiência que a ideia na linguagem da interioridade.

76. Pensamento

O pensamento ele mesmo não pode ser confundido com a ideia, embora não possa ser destacado dela, mas é por uma pluralidade infinita de ideias, das quais quase todas permanecem em potência, que se exprime a fecundidade do pensamento.

Na percepção, na imagem, na ideia, a atividade do pensamento se encontra sempre presente: a diferença destas operações está em relação com seu conteúdo. Mas à medida que se sobe mais alto, a operação parece tomar a dianteira sobre o conteúdo, a percepção é subordinada ao sensível, a imagem se destaca dele em parte, o pensamento tenta evocá-lo por seus próprios recursos, na ideia ele rompe com o sensível e só retém a forma mesma na qual ele será recebido. Há portanto uma tripla pluralidade, uma pluralidade espácio-temporal das percepções, uma pluralidade psicológica das imagens, uma pluralidade lógica das ideias, acima das quais é preciso pôr a unidade do pensamento, que, embora tenha ao que parece uma consubstancialidade mais estreita com a ideia do que com as percepções ou as imagens, não pode ser todavia confundida com ela. Além disso, ela nunca atualiza toda a significação de uma ideia (à qual ela substitui simplesmente uma definição nominal); mas ela porta nela em potência todas as ideias pensadas e pensáveis, e tudo que, em cada uma delas, é pensável sem ser pensado. É neste diálogo entre o pensamento e as ideias que apreendemos melhor este jogo puro do espírito que chama sempre um dado puro para fazê-lo corresponder à sua própria operação, mas até neste plano privilegiado nunca consegue fazê-los coincidir, ao mesmo tempo porque há nele um poder infinito que jamais exercerá inteiramente, e porque, quando o exerce, há sempre, parece, no termo que ele obtém, um além que representa o limite que não pôde transpor. De tal modo que há um vai e vem entre o pensamento e a ideia, onde se reencontra o mesmo esforço para realizar a adequação do pensamento e da operação, sem todavia que se chegue a isso.

77. Valor

O conhecimento do valor nunca pode ser confundido com o valor mesmo.

O conhecimento do valor merece mais o nome de sentimento, ou de fé, do que o nome de conhecimento. O valor é por definição além do real, e se está presente no real mesmo, é além daquilo que o real ele mesmo revela à observação. Tal é a razão pela qual se considera o valor como um ideal. Daí o intervalo que manifesta o valor entre o dado e a operação, mas que é inverso daquele que os separa no conhecimento. No conhecimento com efeito, o dado é a matéria da explicação, é preciso que a operação se acorde com ele, seja que partamos do dado ele mesmo para ir para a operação, seja que partamos da operação ela mesma para nos portarmos ao encontro do dado. Mas a operação de que se trata é uma operação de pensamento: ela não muda a natureza do dado. O valor, ao contrário, é uma exigência e um apelo a fim de que o dado lhe seja conforme, em vez de permanecer aquilo que é. E é por isso que o valor vive da consciência deste intervalo e do esforço que ela faz para transpô-lo, de uma inadequação que procura se transformar em adequação, mas que nunca consegue completamente.

78. Amor

O amor de um ser por outro não abole sua dualidade.

O conhecimento nos põe em relação com as coisas, mas o amor nos põe em relação com as pessoas. No sentido estrito da palavra, não há conhecimento das pessoas, e a única maneira de entrar em relação com elas é precisamente nos interessarmos por elas, experimentar simpatia por elas, ou amá-las. E o amor que temos por elas cria entre nós e elas uma união da qual se pensa às vezes que é, no limite, a busca de uma identificação. Mas há sempre um intervalo que separa as pessoas umas das outras, e a identificação de que se fala, longe de ser a consumação do amor, seria sua supressão. O amor põe um ser como outro eu; eu me alegro que ele seja outro que eu, em vez de sofrer com isso. E o amor cria entre ele e mim esta circulação onde cada um não cessa de receber e de dar. É o amor que é propriamente a descoberta de outro, e pode-se dizer que verifico aqui de maneira impressionante o caráter mesmo que pertence a todas as formas da descoberta, que recebe somente aqui uma forma mais perfeita quando se torna recíproca: pois o objeto que descubro é ele mesmo um sujeito, de tal modo que ele é para mim um dado que se realiza como tal por um dom.

79. Ação

Todo objeto de conhecimento é ao mesmo tempo o objeto de uma ação possível.

No que precede, estudamos somente as operações da consciência enquanto elas põem um objeto com o qual procuram coincidir. Mas mostramos que elas nunca conseguem, o que precisamente nos permite dizer que nunca atingimos o objeto ele mesmo, mas somente a representação do objeto. Esta representação é, em relação ao objeto, não somente incompleta, mas ainda virtual. É esta virtualidade que constitui o pensamento, é esta incompletude que faz que ela seja um ato, isto é, um movimento pelo qual ela procura se acabar. Desde então, o desvio entre o conhecimento e seu objeto torna-se, não somente a condição da consciência, mas ainda o meio desta atividade interior que lhe é inseparável e pela qual toda virtualidade tende a se atualizar, toda insuficiência a se reparar. Somente tal atualização, tal cumprimento não são destinados a reencontrar tal qual um objeto que seria posto primeiro, eles são o meio que nos permite modificá-lo e acabá-lo segundo nossos desígnios. É por isso que o entendimento e o querer são duas operações que se respondem, e é no intervalo que as separa que introduzimos esta liberdade pela qual nos criamos a nós mesmos, colaborando com a criação do mundo.

80. Movimento

A percepção é reguladora do movimento.

Que a percepção não me dê o todo do objeto, mas que me dê somente sua virtualidade, não é o sinal da imperfeição da percepção, é o sinal de que a percepção não tem um papel exclusivamente cognitivo, ou que o conhecimento não exprime nada mais do que um aspecto da consciência. A percepção prolonga somente o processo sensório-motor. E como a sensação só tem significação pelo movimento que lhe responde, diremos do mesmo modo que a percepção só faz aparecer em nós a virtualidade do objeto a fim de nos permitir atualizar nós mesmos esta virtualidade e acabar, segundo a opção subjetiva que tivermos feito, a possibilidade que ela nos propõe. A percepção está portanto sempre em relação com um desejo que já determinava a perspectiva através da qual ela apreende o objeto e que nos guia no cumprimento de uma ação que o modifica. Assim a percepção permanece incompleta e ininteligível sem esta ação que ela guia e que chama. As teorias clássicas da percepção verificam esta interpretação considerando a percepção como uma ação que começa.

81. Criação

A imagem se realiza na criação artística.

A imagem não tem mais relação direta com os objetos como a percepção. Ela é uma criação do espírito que parece só ter subsistência no espírito. E considerou-se-a durante muito tempo como uma espécie de coisa espiritual. Mas a expressão é contraditória. Na realidade, a imagem ela mesma é uma virtualidade que é mais livre do que a percepção e que nossa atividade não cessa de modificar, o que pode se produzir em dois sentidos, seja que eu procure sua fidelidade a respeito de uma percepção antiga (então é a lembrança), seja que eu ponha um puro objeto que imagino. Mas a lembrança, que nunca reencontra a percepção desaparecida, é destinada ela mesma a preparar alguma ação nova, e a imagem permanece indeterminada, e não consigo tomar posse dela enquanto não criei um objeto no qual ela se realiza: o que é a origem da arte.

82. Conceito

O conceito é um meio de ter influência sobre o real.

Enquanto que a lembrança e a imagem chamam sempre certas ações particulares, o conceito ele mesmo é uma regra de ação. Ele serve por conseguinte para permitir a repetição de certas ações que me torno doravante capaz de realizar com segurança em circunstâncias muito diferentes. No conceito, parece que todo dado se esvaeceu. Ele é uma ação intelectual, e esta ação me dá influência sobre o real, desde que a vontade se apodera dela e começa a pô-la em obra. Aqui se encontra confirmada a ligação da teoria e da prática, que faz da teoria mesma a possibilidade de certa prática. O que não confirma entretanto, como se poderia crer, o pragmatismo sob sua forma comum, pelo menos se é verdade que a ação prática, em vez de fundar a ação teórica, é fundada ao contrário sobre ela e encontra nela sua condição de inteligibilidade. Acrescentemos que se o conceito funda a ação técnica, que tem sempre um caráter puramente hipotético, a ideia funda a ação moral que, ela, tem sempre um caráter categórico.

83. Testemunho

O amor chama um testemunho.

O amor ele mesmo exige um testemunho que é o ato mesmo pelo qual ele se exprime e, exprimindo-se, se realiza. Até então ele não é considerado por aquele que ama senão como sendo o desejo do amor, mais do que o amor mesmo, um segredo que não se ousa confessar nem aos outros, nem a si mesmo, uma possibilidade que não se atualiza. A manifestação é portanto essencial ao amor. É por isso que o amor sempre foi considerado como essencialmente criador: e pode-se dizer que o é sob todas suas formas, criador de outro vivente, e criação contínua e recíproca dos dois seres que se amam pelo amor mesmo que os une.

84. Encarnação

O valor procura sempre se encarnar.

Dizendo do valor que ele não é um conhecimento e que interessa ao querer mais ainda do que ao intelecto, o que quisemos marcar é que ele não é nada sem o ato que dele procede e que exprime a fé que temos nele. O valor só existe para reinar no mundo, para tomar lugar neste mundo manifestado pelo qual os seres comunicam uns com os outros e tornam-se uns para os outros mediadores. Tal é a razão também pela qual o valor, se o consideramos nele mesmo, é impossível de circunscrever, ele sempre nos escapa, e dir-se-á ao mesmo tempo que ele é um ideal e que é um fim para marcar que só tem significação no movimento mesmo que produz no interior da consciência. Ele se descobre não tanto em sua oposição ao real quanto pelo ato que se apodera dele ou que o muda.