Multiplicidade
72. Dialética
A palavra dialética designa o método que busca, nas relações dos diferentes aspectos da consciência, o fundamento das relações entre as consciências, e, por via de consequência, entre as coisas, entre as ideias e entre os valores.
Retorno ao sumário
A palavra dialética deve ser conservada para designar o método vivo que busca analisar a própria atividade da consciência, isto é, penetrar a distinção entre os diferentes níveis do sujeito, de maneira a determinar as relações das diferentes consciências umas com as outras, que lhes permitem se distinguir umas das outras no plano da individualidade, reencontrar suas leis comuns no plano da racionalidade, e o absoluto concreto onde haurem como na fonte participada de todas as operações e de todos os dados, pelos quais se exprimem os diferentes escalões da participação. A cada escalão da consciência, a dialética reencontra horizontalmente as conexões entre as coisas, ou entre as ideias ou entre os valores, e verticalmente as conexões entre os valores, as ideias e as coisas. Só um tal método poderá abraçar as articulações entre todos os elementos do real, quando o método de inclusão não superava a relação indeterminada da parte e do todo, o método de construção, a relação unilinear do simples e do complexo, e o método de união dos contrários, a relação de oposição entre o mim e o não-mim, sem cessar posta e sem cessar superada. Os diferentes aspectos do real, ao invés de se acrescentar indefinidamente uns aos outros, formam um feixe de todos os instantes; cada um deles mantém sua heterogeneidade numa subordinação regrada do dado à operação, do inferior ao superior, do indivíduo à razão, da razão ao absoluto, da coisa à ideia, da ideia ao valor.
73. Conexões
Que as diferentes espécies de realidade só possam ser definidas pela análise, isto basta para justificar suas conexões mútuas num sistema regrado onde cada relação pode ser tomada como origem, embora tenham todas um caráter distintivo e heterogêneo.
A dialética tal como a descrevemos é multilinear e não unilinear. Não vai do mesmo ao mesmo por uma espécie de progresso do menos ao mais, método que imita no tempo a criação tal como se a imagina como uma passagem do nada ao ser. Nesta espécie de sistematização orgânica de uma realidade plenária a todos os instantes, cada elemento chama todos os outros para sustentá-lo: e é a diversidade de cada um deles que dá a todos seu lugar regrado na totalidade do Ser. Assim pouco importa por onde se comece; cada uma das relações pelas quais um termo chama um outro tem um caráter rigorosamente original, e não simplesmente uma situação particular no interior de uma ordem lógica que se poderia percorrer nos dois sentidos, mas sem que sua própria sequência possa ser mudada. E é por isso que a ordem dialética não é uma ordem abstrata, como a ordem lógica, que é puramente formal, e deve ser aplicada em seguida a uma certa matéria para tornar o conhecimento possível, é uma ordem real onde cada uma das operações é correlativa de um certo dado. A ordem dialética é, portanto, também uma ordem metafísica, que só pode se justificar cumprindo-se. Abraça todas as operações do pensamento e do querer, assim como as relações que as unem, e não simplesmente esta ordem artificial e construtiva que só vale para certas espécies de conhecimento ou de ação, e que supõe sempre certas relações mais complexas com o real que são implicadas, e que se omite lembrar (como mostram seja a formação dos postulados iniciais, seja uma experiência suposta pela própria descoberta da operação, ou pela relação da operação e de seu efeito). Negligencia-se sobretudo que os atos mais profundos e mais constantes da vida humana, todos aqueles que interessam nossas relações conosco mesmo ou com os outros seres não são redutíveis a estas operações construtivas que se limitam ao mundo da quantidade ou ao mundo enquanto pode ser reduzido à quantidade.
74. Abertura
A dialética é um sistema aberto e não um sistema fechado.
Se o próprio da dialética é descrever as condições e as formas diferentes da participação, depois a correspondência em cada uma delas da operação e do dado, compreende-se que a dialética constitua necessariamente um sistema; mas este sistema, fundado sobre a unidade do Ato absoluto do qual dependem todas as operações de cada consciência particular, não é um sistema puramente dedutivo; ou ao menos cada escalão da dedução chama necessariamente uma experiência que lhe responde, e sem a qual exprimiria ele mesmo apenas uma possibilidade sem conteúdo. Além disso, é preciso dizer que este sistema não pode ser um sistema fechado, porque se pode levar seu desenvolvimento tão longe quanto a análise o permite, estando assegurado de nunca reunir o concreto tal como é dado para cada mim individual com a riqueza infinita de suas nuances particulares. Pode-se todavia dar alguma aplicação desta dialética nos diferentes domínios onde se aplica, prendendo-se apenas a marcar as articulações de abertura das quais as pesquisas especiais determinarão, pouco a pouco, os modos de existência que servem para introduzir.
75. Categorias
No plano lógico, ver-se-á aparecer uma dialética das categorias, aberta pela distinção do espaço e do tempo, que realiza de uma maneira formal a oposição da operação e do dado, e que recebe ela mesma especificações cada vez mais complexas.
A própria participação se realiza pelo advento de uma liberdade que, supondo o sujeito absoluto e fundando nele sua iniciativa, realiza uma operação que lhe é própria, que é inadequada ao todo, mas o obriga a aparecer como um imenso dado ao qual está ela mesma ligada por um corpo que a limita, e lhe serve porém de instrumento. Esta operação pede o tempo como condição de seu cumprimento, e o espaço como condição de aparecimento do universo enquanto é ele mesmo dado. Nenhuma ciência, nenhuma experiência se passam do espaço e do tempo, embora o espaço e o tempo possam dar lugar a análises conceituais diferentes, em relação com o próprio desenvolvimento da experiência que aí encontra lugar. A própria ligação do espaço e do tempo permitirá dele derivar as duas categorias do número, pelo qual a distinção e a reunião dos elementos do tempo (número ordinal) encontram uma representação na distinção e na reunião dos elementos do espaço (número cardinal), e do movimento pelo qual o ponto e o instante não podem ser dissociados um do outro, mas devem sempre ser reunidos no ponto-instante (cf. Alexander), de tal sorte que se se considera seja o mesmo instante em relação a diferentes pontos, seja o mesmo ponto em relação a diferentes instantes, obtém-se o par da imobilidade e do movimento. Enfim se se considera como se juntam os pontos-instantes em relação ao tempo, tem-se a relação de causa a efeito, e se se considera como se juntam em relação ao espaço, tem-se a organização ou o sistema (o sistema integrando nele a causalidade, como Kant havia observado definindo a reciprocidade de ação, e a causalidade sendo esta forma particular de organização que se aplica apenas à ordem temporal). Tais são as seis categorias fundamentais, das quais se pode dizer que por sua combinação ou sua especificação podem fornecer a ocasião de uma multiplicidade de conceitos secundários, dos quais cada um encontra, na experiência, ao mesmo tempo sua confirmação e sua matéria.
76. Operações
Poder-se-ia conceber da mesma maneira um quadro das operações lógicas propriamente ditas, consideradas em sua relação ideal com conceitos puros, abstração feita de uma experiência que serviriam para constituir.
Ter-se-ia assim a predicação e a relação enquanto definem, uma uma ligação estática, a outra uma ligação dinâmica; a adição lógica enquanto inclui vários sujeitos no mesmo grupo (o que supõe uma lógica da inclusão) e a multiplicação lógica enquanto inclui vários conceitos no mesmo sujeito (o que supõe uma lógica da relação); a ordem simétrica e a ordem transitiva; depois tantas operações quantas se queira, que especificariam as primeiras ao infinito^2.
77. Faculdades
No plano psicológico, veremos aparecer uma dialética das funções ou das faculdades, aberta pela distinção do entendimento e do querer, que é ela mesma correlativa da distinção do espaço e do tempo.
O plano psicológico se distingue do plano lógico no sentido de que ao invés de fornecer como este as condições universais sem as quais a experiência de nenhum ser finito seria possível, nos mostra como esta própria experiência se realiza graças a uma atividade do sujeito que, embora tome sempre uma forma individual, se exerce sempre segundo modos comuns inseparáveis do próprio jogo da participação. Assim, as categorias fundam a estrutura do real, e as faculdades a estrutura da consciência. Ora, esta não seria nada se não dispusesse de uma iniciativa pela qual se cria a si mesma colaborando com a obra da criação: o que é propriamente o papel da vontade, e de uma potência representativa pela qual abraça o mundo que não criou e que se torna então um espetáculo para ela: o que é propriamente o papel do entendimento. Não é difícil estabelecer uma correspondência entre o espaço e o tempo de uma parte, a vontade e o entendimento de outra. Mas estas duas faculdades recebem elas mesmas especificações: pois se interiorizamos a vontade de tal maneira que só persiga um possível puro e não um fim real, ela se muda em imaginação; e se interiorizamos o entendimento de tal sorte que só nos dê o espetáculo de nosso próprio passado, temos a memória. Assim, o entendimento e a vontade operam sobre materiais fornecidos pela memória e a imaginação, e chamam estas duas funções à existência como os instrumentos de sua própria realização. Poder-se-ia enfim considerar o desejo como sendo a fonte comum da vontade e da imaginação, mas enquanto dependem uma e outra de uma espontaneidade enraizada na natureza. E o próprio desejo não é mais orientado para um fim objetivo real ou possível, mas para a posse ou o gozo que é capaz de nos dar, isto é, para o prazer. Aqui ainda a análise poderia ser levada indefinidamente e realizar entre estes diferentes termos as combinações mais variadas e mais complexas. É natural que, na ordem psicológica, tenhamos procedido das faculdades mais abstratas, que são constitutivas da própria consciência, às faculdades mais concretas, pelas quais se exprime a constituição de sua subjetividade e de sua individualidade.
78. Sentidos
Poder-se-ia descer ainda até sobre o plano do sensível e encontrar uma dialética dos diferentes sentidos, que se abriria pela distinção da vista e do ouvido consideradas elas mesmas como o sentido do espaço e o sentido do tempo.
Nada mais ousado que prolongar sobre o plano do sensível a dialética da participação. Mas é evidente que se os sentidos são os instrumentos de conhecimento que põem a consciência individual em relação com as formas particulares e concretas da existência, isto é, com a qualidade, deve-se reencontrar até na distribuição das próprias qualidades uma espécie de realização sensível das articulações lógicas do real e das operações pelas quais o mim busca apreendê-lo. Ora a vista é tensa para fora, nos apresenta o mundo exterior a nós num imenso espetáculo, ao invés de que o ouvido só nos faz ouvir sons que só têm existência na duração, e que, talvez, no-la descobrem. Se, agora, nos aproximamos mais de nosso corpo, a fronteira que o separa dos objetos nos é revelada pelo tato que é sempre (e não apenas quando se trata do tato do corpo como se diz quase sempre), um sentido duplo pois nos faz conhecer numa espécie de coincidência momentânea o tocante e o tocado: mas o tocado é o fora que se estende no espaço, ao invés de que o tocante somos nós mesmos, isto é, como todas as sensações cenestésicas, uma sensação e uma emoção ao mesmo tempo, insinuando-se, como elas, na trama de nosso próprio devir. Através do corpo que acaba de nos ser revelado e que era apenas o instrumento da vista e do ouvido, o gosto e o olfato vão buscar nas próprias coisas uma espécie de afinidade secreta conosco que se apresentará a nós no sabor através de uma contextura espacial, e no odor através de uma vaga temporal. Esta lista quase clássica — salvo sobre um ponto onde, examinando o tato enquanto está espalhado sobre toda a superfície do corpo, o considera como um sentido duplo, seja que por sua face externa nos faça conhecer o contato dos objetos e do corpo, seja que, por sua face interna, nos faça conhecer, se se pode dizer, a presença e o estado do corpo — não pode ser considerada como exaustiva; permitirá dar lugar, graças ao mesmo método, a outros sentidos novamente descobertos, seja por análise de outros sentidos mais complexos como acontece principalmente para o sentido do tato e o sentido cenestésico, ou mesmo por composição de sentidos mais simples como acontece talvez para as sensações de orientação.
79. Divergência
As diferentes espécies da dialética se encontram na origem quando consideram apenas as condições mais gerais do ato de participação: divergem à medida que dele se afastam e que penetram mais adiante em seu domínio próprio.
Este método dialético é ele mesmo um método universal: pode ser aplicado a todos os problemas. Não comporta nenhuma rigidez. É natural que, retornando sempre como fundamento de suas operações ao ato de participação, reencontre sempre também na origem as mesmas divisões fundamentais. Mas seria vão querer estabelecer em seguida uma espécie de simetria artificial entre as divisões particulares. Pois, em cada uma de suas aplicações particulares, reencontra precisamente um modo irredutível da participação que deve fazer aparecer oposições específicas, características de cada domínio.
É, portanto, na dialética, onde se efetua a passagem do real ao possível e do possível ao real, que se efetua a comunicação entre as consciências. Ela é mais importante que aquela que nos permite evocar as ideias das coisas por um ato do intelecto, antes de mostrar como posso modificar as coisas por um ato da vontade. Estas consciências se encontram assim unidas entre si por relações propriamente espirituais, isto é, estranhas ao espaço e ao tempo, e dos quais o espaço e o tempo são apenas os veículos. O que seria impossível se o mim fosse reduzido aos limites da subjetividade individual, se não residisse na relação viva que reúne todos os sujeitos individuais no interior do sujeito absoluto pelo meio do mim transcendental.
80. Identidade
Ser o que se conhece.
Há muita ingenuidade na afirmação dos Antigos de que só o semelhante conhece o semelhante, e disse-se ao contrário que só há conhecimento do objeto, que o que conheço é apenas o não-mim. Porém parece que é preciso introduzir aqui alguma nuance. Pois quer-se bem que o sujeito como tal permaneça independente de todo objeto e mesmo que não seja alterado pelo conhecimento que dele tem, da mesma forma que a liberdade, em sua pureza, não é maculada por nenhuma das escolhas que fez. Mas não é assim do mim, pois o próprio do mim é ser determinado, e, se é inseparável da consciência que tem de si mesmo, pode-se dizer que nada é mais que a própria perspectiva (teórica e prática) que tem sobre o mundo, e não mais apenas o foco desta perspectiva.
81. Subordinação
A subordinação do mundo dos fenômenos e do mundo das ideias ao mundo dos seres.
O princípio que domina esta dialética é, portanto, como se vê, uma subordinação não apenas de todo sujeito psicológico ao sujeito transcendental e do sujeito transcendental ao sujeito absoluto, mas uma subordinação de todas as formas de realidade, a saber das coisas e das ideias, aos seres que as percebem e que as pensam. As coisas e as ideias que estão em relação umas com as outras, como o sujeito psicológico com o sujeito absoluto, são destinadas a assegurar entre os seres as distinções mais sutis e ao mesmo tempo as comunicações mais delicadas. É o próprio papel da dialética segui-las em todo seu detalhe.
82. Diálogo
A dialética definida ao mesmo tempo como uma distribuição e como um diálogo.
Diremos, por conseguinte, que é preciso manter à palavra dialética o duplo sentido que tinha entre os Gregos: ela é um diálogo pelo qual as diferentes consciências entram em relação umas com as outras, não para buscar um termo idêntico no qual viriam se abolir, mas para fundar sua própria diversidade numa unidade que as supera. Mas isto só é possível pelo aparecimento de uma multiplicidade de objetos de pensamento, que cada sujeito e todos os sujeitos poderão pôr como fim e limite de sua própria operação e que constituirão um mundo aberto a todos, no qual cada uma delas poderá penetrar, traçando aí sempre novos caminhos. Tal é a razão pela qual a dialética é um diálogo que se prossegue por uma distribuição, não apenas das coisas, mas ainda das essências, isto é, das próprias coisas na medida em que se tornam transparentes para o pensamento e superam, por assim dizer, esta inacessibilidade à qual sua unicidade individual as havia até então votado.
83. Interioridade
O método não consiste em reconstruir um universo que nos fica exterior, mas em definir nossas relações com um universo ao qual permanecemos interior.
O erro característico de quase todos os métodos é pensar que a reflexão nos permite nos retirar do universo e reconstruí-lo em seguida pelas só forças de nosso espírito, como uma espécie de objeto lógico, análogo à obra de um artesão. O método ambiciona sempre ser uma espécie de criação do mundo pelo pensamento. Mas é aí uma visão superficial, pois a própria reflexão, se se põe fora do universo enquanto é representado, precisamente porque dele faz seu objeto, não pode ser posta fora do próprio ser. Ela é um de seus modos, e, desde então, só pode se libertar dando conta de sua própria possibilidade, isto é, de sua relação com o todo do Ser no qual se inscreve e do qual seu papel é precisamente reencontrar os diferentes aspectos, com as relações que os unem. O método deve, portanto, ao invés de nos obrigar a nos colocar fora do universo, nos situar num universo do qual descreve as diferentes articulações conosco.
^2 Sobre esta questão da lógica da inclusão e da lógica da relação, acreditamos dever remeter, dada a extrema brevidade aqui da redação, à IIª Parte de Do Ser, especialmente cap. V. (N. do E.)