Subjetividade

Capítulo III - Subjetividade

42. Liberdade

A subjetividade absoluta reside num ato que tira de si mesmo suas próprias razões de agir, isto é, num ato livre.

É evidente que a existência do eu não é a de uma subjetividade pura ou absoluta. Ela é sempre inseparável de uma objetividade que, é verdade, só tem sentido para ela, mas que a limita e a entrava. É a objetividade do corpo, e através do corpo, a de todo o universo. Assim o eu é ativo e passivo ao mesmo tempo; mas sua passividade é uma espécie de sombra da objetividade do mundo em sua própria subjetividade. Seria preciso, por conseguinte, identificar a subjetividade absoluta da qual a nossa apenas participa, com um ato sem passividade. Este ato poderia ser denominado um ato livre, pois não poderia ser determinado por nenhum daqueles que agiriam sobre ele de fora. Pode-se, portanto, dizer que age sem causa. O que não quer dizer que age sem razão. Pois este termo de razão é o próprio termo do qual nos servimos para designar uma atividade inteiramente interior a si mesma, que não é nem uma força cega, nem uma fantasia caprichosa, e que, por conseguinte, é capaz de justificar todas as suas operações pela consciência que tem delas, isto é, testemunhando que é só nela que têm sua raiz. Pode-se dizer que uma tal atividade, produzindo-se a si mesma, produz também suas próprias razões.

43. Adequação

A reflexão busca a adequação ao ato livre sem jamais alcançá-la: no intervalo que a separa aparecem todos os objetos da experiência.

O próprio da reflexão é abandonar o próprio objeto do qual partiu, a fim de redobrar o espírito sobre sua pura espontaneidade criadora. Ela nunca consegue inteiramente. E é precisamente no intervalo que nos separa que se formam todos os objetos da experiência. Mas estes objetos, ao invés de nos serem simplesmente dados como eram no início, estão sempre em correlação com uma operação da consciência. Não que esta consiga jamais inteiramente construí-los; eles lhe correspondem, embora lhe acrescentem, e aparecem sempre para ela como uma verdadeira revelação.

44. Consciência

A regressão produz o dado e a consciência do dado.

Sem dúvida, para que houvesse um dado, era sempre preciso que houvesse um ato que se o desse. Somente este ato não aparecia. O próprio da reflexão é desnudá-lo. Desde então, pode-se bem dizer que é ela, pela própria regressão que produz, que faz aparecer o dado e a própria consciência que dele temos. Até então, o dado não se destacava enquanto dado: não era dado a alguém. Pois havia uma perfeita coincidência entre a operação e seu objeto. Mas era o objeto que absorvia a operação e a aniquilava. Agora, ao contrário, é a operação que tende a absorver o dado e a fazê-lo desaparecer. Sem dúvida ela não consegue, senão no abstrato, mas se ensaia, e exerce uma modificação sobre o dado, que não é o mesmo antes e depois do ato da reflexão, e que dá sobre ele acesso tanto à vontade quanto ao pensamento.

45. Poder

A reflexão só tem sentido para um sujeito, mas este sujeito não é um suporte, é um poder que, na reflexão, se atualiza.

A reflexão só nos afasta do objeto para nos descobrir um sujeito sem o qual não haveria nenhum objeto. A própria palavra sujeito não está isenta de ambiguidade, porque parece que designa um suporte, ao invés de que o sujeito não é um suporte, mas um centro de referência ao qual todos os objetos que podem ser postos devem ser relacionados. Não basta dizer que é um centro de referência, pois este centro poderia ser ele mesmo objetivo. É um ato de localizar que se faz ele mesmo centro de localização. Só podemos apreendê-lo em seu próprio exercício, e é por isso que se pode defini-lo como um poder que este exercício atualiza. Pode-se bem considerar este ato como só tomando posse de si mesmo afastando-se do objeto: ele permanece sempre em relação ideal ou real com ele, sem o que não seria um sujeito.

46. Exercício

Este poder só é conhecido em seu exercício mas sem se confundir porém com ele.

É evidentemente impossível conhecer este poder independentemente de sua própria operação, sem o que não se distinguiria do nada. Este poder está, portanto, sempre engajado numa experiência: é por isso que é tão frequentemente ofuscado por esta própria experiência e que pode, por conseguinte, ser negado. Pode-se pô-lo em luz, parece, distinguindo sua operação real, entendamos por aí aquela pela qual reencontra uma experiência perceptiva, de sua operação ideal, pela qual reencontra uma experiência puramente imaginária. Aqui sentimos bem que pode modificar esta experiência quase a seu bel-prazer, aniquilá-la, se quiser, e que ela cessa de subsistir, desde que é interrompido. Assim se vê que este poder não se identifica com seu próprio exercício: é ao mesmo tempo sua virtualidade e sua disposição, porta em si uma infinidade que vai além de toda operação atual ou possível, que as contém todas e só delas usa por uma livre iniciativa.

47. Perspectiva

É apreendido primeiro sob a forma de um sujeito psicológico, que se põe ele mesmo em relação aos seus estados como engajado numa situação e como centro de uma perspectiva original no mundo.

O sujeito só se descobre como sujeito numa existência individual e concreta, aquela que se exprime pela palavra "eu" enquanto este "eu" é único no mundo, que é distinto de todos os outros "eu", que ressente estados que só ele experimenta como seus, que está sujeito a viver no tempo e que está ele mesmo engajado numa situação sem cessar nova. Um tal sujeito é o centro de uma perspectiva sobre o mundo que lhe pertence também em próprio e que é formada por objetos particulares que têm, eles também, uma existência concreta, que apreende apenas por percepções que têm, elas mesmas, um caráter subjetivo e cada uma das quais só exprime um dos múltiplos aspectos do objeto.

48. Sensível

Em correlação com o eu psicológico encontramos o mundo sensível com as duas acepções que a palavra sensível apresenta.

O sujeito psicológico só realiza a identidade do ser e do conhecer em si mesmo, enquanto é ao mesmo tempo único e finito. Mas enquanto é finito, a existência do mundo, e mesmo sua própria existência enquanto o mundo o limita, não podem ser para ele senão existências dadas. Elas só podem lhe ser dadas de tal maneira que seja afetado por elas naquilo que tem precisamente uma interioridade, mas que não é uma interioridade perfeita ou que não basta ele mesmo determinar. O que equivale a dizer que o mundo não pode ser para ele senão um mundo sensível, e que no que concerne ao seu ser próprio, é obrigado a senti-lo, ao mesmo tempo em sua presença e em modalidades, antes de ser capaz de pensá-lo e com maior razão de criá-lo.

49. Intervalo

Mas o mundo sensível preenche também o intervalo que separa o eu psicológico do eu puro.

O mundo sensível se apresenta a cada consciência sob uma forma propriamente individual, em relação não apenas com minha organização fisiológica, mas também com meu passado e mesmo com minha situação a cada instante. Mas só posso dar conta, pelo que vem de mim, do aspecto sob o qual o mundo se apresenta a mim, daquilo que chamo propriamente a perspectiva através da qual o olho, e não de seu conteúdo, isto é, daquilo que oferece com efeito ao meu conhecimento. Este conteúdo me supera sempre: ele é a medida de minha passividade em relação ao mundo. Ele preenche o intervalo que separa meu eu psicológico do eu que perceberia as coisas tais como são e não em sua relação com seu corpo, isto é, que não conheceria delas senão suas ideias.

50. Retirada

A reflexão descobre este caráter perspectivo do sujeito psicológico colocando-o no interior de uma experiência da qual ela mesma se retira.

Contudo a reflexão, depois de ter posto o mundo em questão para relacioná-lo ao sujeito individual ou psicológico, pode pôr em questão este próprio sujeito, ou considerá-lo por sua vez como um objeto. Dizer que relaciono o mundo sensível, ou meus próprios estados, a um centro original de perspectiva, é dizer que este "eu" não se confunde com este próprio centro, isto é, com o eu. Pois o sujeito individual ou psicológico só tinha ele mesmo sentido por sua ligação com um corpo, que gozava deste privilégio, que só ele podia ser considerado como meu corpo. Mas meu corpo faz parte do mundo que percebo, e deste mundo faz parte também toda minha subjetividade individual ou psicológica. Retiro-me, portanto, eu mesmo deste mundo do qual era há pouco o centro, a fim de contemplá-lo, por assim dizer, de mais alto. Assim o sujeito se desindividualiza ao mesmo tempo que se desencarna. À consciência do objeto se substitui uma consciência da consciência. É só neste momento que deixo propriamente o mundo das coisas para penetrar no mundo do espírito.

51. Generalidade

A reflexão se põe então como o ato de um sujeito que não é mais tal sujeito.

Um tal sujeito que não é mais tal sujeito, pode, portanto, ser definido como um sujeito em geral. Este sujeito se encontra além da experiência sensível que tenho do mundo, como da experiência psicológica que tenho de mim mesmo. É por isso que se o denomina algumas vezes transcendental. Mas isto não quer dizer que dele não tenho nenhuma experiência; somente esta experiência está presente na experiência psicológica como a experiência do homem está presente em cada homem, menos ainda como uma ideia que poderia tirar de uma comparação com os outros, que como a experiência de certas virtualidades que depende de mim exercer, que me são comuns com todos os homens, e às quais darei por meu próprio ato uma forma única e individual. Este sujeito puro é independente de todo corpo particular, mas não de todo corpo qualquer, somente exprime a condição do conhecimento para todo ser finito que tem um corpo, antes que tenha tal corpo diferente de todos os outros.

52. Encarnação

Este sujeito todavia só tem existência no sujeito psicológico.

Não se pode desprezar o sujeito psicológico elevando-se acima dele. Pois primeiro há uma certa identidade essencial entre o eu psicológico e este eu puro, de tal sorte que é o mesmo eu que rejeita, por assim dizer, os modos particulares de sua própria existência que o limitam e o acorrentam, para se redobrar sobre sua interioridade mais profunda, onde se pode dizer que se encontram reunidas, na indeterminação de um ato que dependerá dele exercer, todas as possibilidades que poderão ser atualizadas. Mas esta passagem do eu psicológico ao eu puro se opera no mesmo eu, menos por renúncia do eu psicológico a si mesmo, que por um aprofundamento deste mesmo eu, do qual o eu puro nunca pode ser dissociado e no qual recebe sempre sua própria realidade. O eu puro é sempre ao mesmo tempo um eu psicológico: só pode conhecer e agir através do eu psicológico.

53. Absolutidade

Se o sujeito não fosse também sujeito absoluto, não seria propriamente sujeito.

Dir-se-á porém que a ideia de um sujeito absoluto é contraditória e é verdade dizer num sentido que, na noção do sujeito absoluto como no mais positivo de todos os termos correlativos, a oposição do sujeito e do objeto se encontra de certa maneira transcendida. O que é verdade, embora o absoluto seja um em si ao qual convém o nome de sujeito por uma espécie de privilégio pois o objeto é sempre relativo e segundo, e só tem sentido para o sujeito e em relação a ele. Alegar que o sujeito só se põe como sujeito em sua relação com um objeto, isto é verdade também, mas a relação não é simétrica, pois o sujeito tem necessidade do objeto para determiná-lo, ao invés de que o objeto tem necessidade do sujeito para fazê-lo ser. Pode-se bem dizer que o sujeito é então para si mesmo seu próprio objeto, mas não é aí senão uma maneira de falar que é transposta ilegitimamente do conhecimento à consciência. O sujeito absoluto é um sujeito que só é sujeito, e do qual o sujeito transcendental e o sujeito psicológico tiram um e outro sua subjetividade.

54. Mediação

O sujeito em geral é mediador entre o sujeito psicológico e o sujeito absoluto.

O sujeito em geral não tem existência isolada. O que explica por que a filosofia tende sempre a confundi-lo com o sujeito individual e se muda em psicologia, ou com o sujeito absoluto e se muda em metafísica. Mas embora a consciência busque sempre obter uma relação imediata entre o individual e o absoluto, porém não pode negligenciar a existência de uma multiplicidade de sujeitos individuais. E não se pode, sem dúvida, pôr um só sem pô-los todos. Desde então, é preciso conceber relações de cada sujeito com todos os outros, mas para isto é preciso descobri-los como sujeitos, o que só é possível pelo intermédio do sujeito em geral, do qual se compreende sem pena que possa encontrar uma encarnação em outros indivíduos que eu mesmo, e graças ao qual poderei conceber por que o mundo no qual vivo é o mesmo mundo que aquele onde vocês vivem, embora não o percebamos da mesma maneira.

55. Aperspectividade

A própria ideia de todo centro de perspectiva sobre o mundo deve ser ultrapassada: ela o é pela ideia de um sujeito absoluto ou aperspectivo.

Há entre os três sujeitos uma dupla relação recíproca, de tal sorte que cada um parece engendrar o outro, ora como sua condição e ora como seu efeito. Que não se possa separar o sujeito psicológico do sujeito transcendental, isto aparece assaz claramente se se pensa que o sujeito psicológico porta em si o sujeito transcendental e tende para ele quando se eleva do individual ao universal, mas que o sujeito transcendental se encarna no sujeito psicológico e se volta necessariamente para ele desde que se realiza. Da mesma forma, o sujeito transcendental tende para o sujeito absoluto como para a própria fonte que o alimenta, e o sujeito absoluto tende para o sujeito transcendental como para a condição de possibilidade de uma participação sempre oferecida. Mas o próprio do sujeito transcendental é ser atravessado de tal maneira que uma relação imediata e viva possa se introduzir entre o sujeito psicológico e o sujeito absoluto. Mas então o sujeito psicológico se eleva para o sujeito absoluto, quando busca superar todas as suas limitações, e o sujeito absoluto desce para o sujeito psicológico como para a participação atual e pessoal.

56. Inseparabilidade

Os três sujeitos são sempre inseparáveis e só se distinguem um do outro pela análise.

Não há lugar, malgrado as distinções que veremos, para fazer três sujeitos diferentes escalonados segundo uma ordem hierárquica e unidos entre si por uma espécie de simbiose. Há apenas um só sujeito, mas no qual a análise faz aparecer certas relações que são constitutivas do sistema do mundo. A experiência mais simples, mais concreta mas mais limitativa, nos põe em presença do sujeito individual; então o mundo se confunde com a percepção que dele temos. Mas o sujeito individual é apenas uma encarnação do sujeito em geral, que nos permite pôr outros sujeitos individuais e as leis comuns a todas as perspectivas que podem tomar sobre o mundo. O sujeito em geral está sempre encarnado num sujeito individual, e o sujeito individual porta sempre em si as exigências do sujeito em geral. Da mesma forma enfim o sujeito em geral não pode se bastar; pôr um centro de perspectiva é pôr um mundo sem perspectiva e um sujeito deste mundo que não poderia se sustentar de outro modo. Este mundo sem perspectiva não é nem o mundo dos sentidos que não é nada senão para o sujeito individual, nem o mundo das ideias que não é nada senão para o sujeito em geral, mas o mundo formado por todos estes sujeitos individuais, do qual exprime a possibilidade atual. Ora, o sujeito em geral porta em si o sujeito absoluto do qual exprime a limitação, da mesma forma que o sujeito absoluto chama o sujeito em geral, como a testemunha de sua absolutidade.

57. Atividade

O sujeito psicológico, enquanto está isolado do sujeito transcendental, é passivo em relação aos seus próprios estados; o sujeito transcendental é ativo em relação ao sujeito psicológico e passivo em relação ao sujeito absoluto; o sujeito absoluto é um ato sem passividade.

Se se considera o sujeito psicológico em si mesmo, ele não é sujeito senão de seus próprios estados. Mas em relação a estes estados ele é ele mesmo passivo; assim se define ele mesmo como um indivíduo que é determinado por seu corpo, por sua situação e pelo mundo do qual faz parte. Só se pode conceber sua atividade como vindo de mais alto que ele: ela é um pensamento que se determina e por conseguinte se individualiza, e por conseguinte ainda o sujeito transcendental é ativo em relação ao sujeito psicológico, que recebe dele seus próprios estados pelo intermédio do corpo e do mundo. Mas a atividade do sujeito transcendental não é uma atividade que procede dele mesmo: ela vem do sujeito absoluto em relação ao qual é ele mesmo passivo, como se vê no aparecimento das ideias. Quanto ao sujeito absoluto, é um ato sem passividade, que está ele mesmo presente em todos os movimentos do sujeito psicológico e do sujeito transcendental, sem que umas nem outras consigam igualá-lo.

58. Degrau

O sujeito transcendental é o degrau que deve galgar o sujeito psicológico para atingir o sujeito absoluto.

Não basta dizer que o sujeito transcendental é mediador entre o sujeito psicológico e o sujeito absoluto. Ou antes, não é um mediador vivo, é, se se pode dizer, uma atitude interior que deve tomar o sujeito quando supera o degrau psicológico e busca reencontrar o sujeito absoluto. Acontece que se pára no degrau do sujeito transcendental. Então o ser guarda para nós um caráter abstrato e formal: desconfia-se da ideia como se havia desconfiado do sensível. Mas o próprio do sujeito transcendental é nos abrir a via para a unidade do sujeito absoluto, que funda não apenas sua possibilidade, mas ainda a realidade de todos os sujeitos individuais, com a vocação original e a experiência incomparável que cada um deles tem do ser e da vida.

59. Aprofundamento

O sujeito psicológico é o único do qual temos uma experiência imediata; o sujeito transcendental e o sujeito absoluto estão envolvidos nele contanto que se aceite aprofundá-lo.

Não posso ter outra experiência senão a de um eu que é o meu, e que é, por conseguinte, sempre um eu psicológico; é o eu vivido. Ele não pode ser posto sem um pensamento que o pensa e que, por conseguinte, o supera. Tal é o caráter do sujeito transcendental, que está sempre implicado no sujeito psicológico e que não pode dele ser separado. O sujeito absoluto está por sua vez implicado pelo sujeito transcendental, mas de tal maneira, desta vez, que supera ele mesmo todo ato de participação real ou possível. Assim, embora esteja presente no interior deste próprio ato, só é propriamente um sujeito absoluto na medida em que permanece sempre, além dele, um além de nós. Além disso, é uma existência concreta comparável à minha, e que, como toda existência que não é a minha, embora a sustente e a anime, só pode ser posta por um ato de fé.

60. Finitude

O eu transcendental não é próprio do homem mas do ser finito em geral.

Poder-se-ia ser tentado, e se o fez frequentemente, a reduzir o eu transcendental ao eu do homem por oposição ao eu de tal homem, e é a razão pela qual aconteceu muito frequentemente que se deu do kantismo uma interpretação biológica. Encontra-se aí uma lembrança da distinção aristotélica entre a espécie e o indivíduo. Mas pensamos que o eu transcendental não está de modo algum limitado às condições particulares da existência humana. É inseparável da ideia de uma perspectiva qualquer que possamos ter sobre o mundo. Donde se pode tirar que, malgrado as diferenças entre as percepções que dele têm, não há senão um mundo para todos os seres finitos. Assim é possível deduzir condições que seriam, como Kant o viu, as condições de possibilidade de uma experiência em geral. Estas condições devem ser válidas além da humanidade, embora possam receber especificações privilegiadas em cada forma particular da experiência: assim há, sem dúvida, um espaço e um tempo sem os quais não há perspectiva na qual o mundo possa ser tomado, embora seja possível distinguir espaços e tempos diferentes, em relação com a situação e com as necessidades dos diferentes seres que estão no mundo. Esta vista nos permitiria, talvez, estabelecer uma comparação ao menos hipotética entre a visão do mundo pelos animais e a nossa, de tal sorte que, embora não haja neles ruptura entre o eu psicológico e o eu transcendental, eles não possam se elevar de um ao outro.

61. Continuidade

O sujeito psicológico, o sujeito transcendental e o sujeito absoluto só se descobrem a nós por um aprofundamento contínuo, sem que jamais possamos considerar nenhum deles como um objeto.

O sujeito psicológico, o sujeito transcendental e o sujeito absoluto devem ser considerados como um só e mesmo sujeito que merece o nome de consciência ou de liberdade. Não há, portanto, três sujeitos diferentes. A participação os liga e os separa. Passa-se de um ao outro por uma espécie de aprofundamento progressivo, sem que um deles possa jamais ser considerado como um objeto para o outro. O sujeito transcendental constitui uma espécie de mediação entre os dois outros. O próprio do ser psicológico é superar sua própria limitação, orientar-se para o absoluto que é a própria fonte de sua existência e de todos os bens que é capaz de possuir. Mas quando se orienta no sentido oposto, isto é, quando se vai do sujeito absoluto ao sujeito psicológico, então se tem que ver seja com a criação que é uma participação proposta, seja com a queda, se esta proposição não é aceita, se a criatura se compraz em seus próprios estados e não aceita realizar sua própria conversão espiritual.

62. Distinção

O sujeito absoluto é o único meio que temos de explicar a distinção entre o sujeito psicológico e o sujeito em geral.

Sem o sujeito absoluto, pergunta-se como poderia se fazer a distinção do sujeito psicológico e do sujeito transcendental. Nenhuma razão os impediria de serem confundidos. Mas o sujeito psicológico se muda em sujeito transcendental a partir do momento em que supera o horizonte da individualidade e em que, pondo o absoluto da subjetividade, pode reencontrar nela o fundamento de sua própria existência, e da existência dos outros sujeitos, de sua individualidade e ao mesmo tempo de seu acordo.

63. Universalidade

O sujeito absoluto é universal como o sujeito puro, e concreto como o sujeito psicológico.

Viu-se que o sujeito puro só se realiza no sujeito psicológico, de tal sorte que, como os abstratos, repete sua presença em todos os indivíduos. É o mesmo em todos, mas porque é a condição de todas as consciências individuais: permite-lhes apenas se assemelharem. Mas, que seja ele mesmo possível, isto supõe, com efeito, que, como o sujeito psicológico se refere a ele, ele se refere por sua vez ao sujeito absoluto, universal como ele, mas de uma universalidade que porta em si o caráter da unidade e não o da repetição, que funda e acorda todas as perspectivas porque não comporta nenhuma, e que é ele mesmo real e concreto como o sujeito psicológico.

64. Fundamento

O fundamento concreto da possibilidade do sujeito puro ou, o que vem a ser o mesmo, do acordo entre os sujeitos individuais, não pode residir num objeto transcendente, mas num sujeito do qual tiram sua atividade e sua individualidade próprias.

É com a afirmação deste sujeito que começam todas as dificuldades da filosofia. Pois o sujeito puro está evidentemente presente no sujeito psicológico, que, sem ele, não seria de nenhuma maneira um sujeito. Mas pois que o sujeito puro só se realiza ele mesmo no sujeito psicológico, o sujeito absoluto não pertence mais à esfera do eu nem do mim. Não é mais aquilo pelo qual o eu ou o mim se põe, mas a condição que lhe permite se pôr. Ora esta condição está além do sujeito, e pode-se sem paradoxo identificá-la ainda com um sujeito, sobretudo no momento em que se reconhece que é aperspectiva? E, dizendo que é ainda um sujeito, não se é obrigado a identificá-la, por um retorno à idolatria, seja com o sujeito individual, seja com um ser distinto deste próprio sujeito, e que o põe como um objeto por um ato de criação pura? Não valeria melhor dizer que a possibilidade do sujeito puro e o acordo entre todos os objetos se faz na unidade de um objeto transcendente? Mas este objeto transcendente é ele mesmo uma suposição gratuita. É mesmo uma contradição, se é verdade que todo objeto existe para um outro, isto é, é necessariamente um fenômeno. Além disso, atribuindo-lhe o caráter da unidade, mostra-se assaz claramente que o que se reclama dele é precisamente o que define a operação própria do sujeito como tal considerando-a como realizada e não como realizante. Enfim, desconhece-se, na atividade do sujeito puro e do sujeito individual, este fato de que a atividade que exercemos é ela mesma uma atividade que é recebida ao mesmo tempo que é exercida.

65. Participação

O sujeito absoluto é um sujeito ao qual participa o sujeito psicológico pelo intermédio do sujeito puro.

É porque o sujeito absoluto é ele mesmo sem perspectivas, que as permite e que as funda todas. Ele dá a cada uma a interioridade que lhe é própria. Mas esta interioridade só é perfeita nele. É por isso que é, para o sujeito psicológico e para o sujeito puro, como uma espécie de ideal com o qual nunca coincidem, mas que, contudo, sustenta e anima todos os seus movimentos; o sujeito psicológico é real, mas sua atividade, em razão de sua limitação, chama uma passividade pela qual se exprimem sua ligação com o todo do ser e a repercussão que tem nele cada uma de suas operações; o sujeito puro é abstrato, e embora supere a passividade do sensível, chama porém na ideia uma matéria simplesmente pensada e que se lhe impõe sem que possa nem esquecê-la, nem reduzi-la. Assim por sua realidade, o mundo sensível e o mundo das ideias atestam o caráter participado do sujeito psicológico e da atividade do sujeito puro, e evocam um ato puro, isto é, uma subjetividade absoluta à qual nenhuma objetividade responde.

66. Valores

Em correlação com o sujeito absoluto pomos o mundo dos valores.

O sujeito absoluto não pode aparecer em relação ao eu psicológico e ao eu puro senão como, de uma parte, o princípio no qual bebem e, de outra parte, o ideal para o qual tendem. De tal sorte que esta transcendência do sujeito absoluto em relação ao sujeito individual e ao sujeito transcendental que nunca conseguem igualar, os obrigará a engajar seu próprio desenvolvimento no tempo e a considerar o sujeito absoluto como sendo um valor supremo, e todas as funções que podem exercer como definindo formas particulares do valor pela própria relação que sustentam com o sujeito absoluto definido como sendo, para elas, ao mesmo tempo o real do qual participam, e o ideal para o qual tendem.

67. Direção

O mundo dos valores não tem a objetividade do mundo das coisas ou mesmo do mundo das ideias: ao invés de preencher o intervalo entre o sujeito psicológico e o sujeito puro como as coisas, ou o intervalo que separa o sujeito puro do absoluto como as ideias, ele exprime a ligação com o absoluto das ideias ou das coisas pela própria direção da atividade no sujeito que as põe.

Os valores não constituem, propriamente falando, um mundo como as coisas ou como as ideias. Não se pode apreendê-los nem sob uma forma sensível, nem sob uma forma intelectual. Eles exprimem a relação de todos os termos que estão no mundo com o absoluto, e por conseguinte as coisas ou as ideias podem ser afetadas elas mesmas de um caráter de valor. Não há valor que não repercuta de alguma maneira sobre o plano das coisas e sobre o plano das ideias ao mesmo tempo. Mas por esta relação imediata que tem com o absoluto, o valor não pode residir senão no próprio sujeito enquanto participa deste absoluto por um ato que lhe é próprio: assim o valor reside no uso que faz das coisas ou das ideias, mais que nas coisas ou nas ideias consideradas em si mesmas. Tal é a razão também pela qual não há valor que não comporte uma expressão sensível e uma expressão ideal ao mesmo tempo, e que não deva depender da própria atividade de um sujeito que a discerne e que a põe em obra.

68. Acordo

É o sujeito absoluto que funda o acordo do sensível e da ideia.

Um dos problemas essenciais da filosofia sempre foi explicar como se produz o acordo entre o abstrato e o concreto, o sensível e a ideia. Mas este acordo cessa de ser um mistério se se pensa que a ideia preenche o intervalo entre o sujeito puro e o sujeito absoluto, como o sensível preenche o intervalo entre o sujeito sensível e o sujeito puro, mas que o sujeito absoluto está presente aos dois, e que o sujeito puro é passivo em relação ao sujeito absoluto, pois sua atividade é uma atividade recebida, como o sujeito sensível é passivo em relação ao sujeito puro. De uma maneira mais precisa, o sujeito puro encontra na ideia as condições gerais às quais deve necessariamente satisfazer o sensível para que tal sujeito individual possa ele mesmo ser posto.

69. Além

O sensível é para o sujeito psicológico um além como a ideia para o sujeito puro.

O sensível é o que é dado ao sujeito psicológico para exprimir sua relação com o mundo, é o que lhe é dado e que é incapaz ele mesmo de criar. Assim o sensível tem sempre para ele o caráter de um aporte e de uma revelação da qual nunca esgotará toda a riqueza. É o mesmo da ideia: ela é dada também ao sujeito puro sem que possa jamais acabar de construí-la, ela exprime sua relação com o sujeito absoluto na medida em que este o supera, como o sensível exprime também a superação do sujeito puro em relação ao sujeito psicológico.

70. Ideias

Em correlação com o eu puro encontramos o mundo das ideias.

O eu puro abole todas as perspectivas particulares que podemos tomar sobre o mundo, mas não a ideia de toda perspectiva em geral. Tal é a razão também pela qual não pode se representar as coisas senão tais como seriam para um sujeito que não seria tal sujeito particular. Por conseguinte, para que as próprias coisas possam ter um aspecto sensível, é preciso primeiro que satisfaçam às condições que lhes permitem ser coisas para qualquer sujeito. Buscar estas condições é substituir às coisas as ideias das coisas. Estas ideias pedem sempre para ser construídas: mas o são segundo as leis necessárias da representação em geral. Enfim o próprio eu torna-se uma ideia, que não tem realidade, que pertence ao eu individual pensar, a fim de que precisamente possa, realizando-a, se realizar.

71. Riqueza

A ideia é necessariamente mais rica e mais pobre ao mesmo tempo que a realidade sensível.

Pode-se agora mostrar que o sensível terá com a ideia a mesma relação que o eu individual com o eu puro. Pois a ideia pede sempre para tomar uma forma sensível, como o eu puro pede sempre para tomar uma forma psicológica. De tal sorte que parece bem que o sensível acrescenta à ideia, como a subjetividade individual acrescenta à subjetividade como tal. E porém sabemos bem que há mais coisas na ideia: virtualidades e possibilidades que nenhuma das formas do sensível conseguirá traduzir, como há, na simples subjetividade, uma riqueza e uma fecundidade às quais toda consciência particular não cessa de impor sua própria limitação.

72. Imaginação

O eu puro, elevando-me acima de minha perspectiva individual no mundo, me permite pensar os outros sujeitos particulares e, até um certo ponto, imaginá-los e contê-los.

O eu puro não está apenas em correlação com um mundo de ideias que se oferecem a ele como tantos objetos intelectuais inesgotáveis eles mesmos, como o são os objetos sensíveis para o eu psicológico. Ele não encerra em si apenas a possibilidade de pensar todas as ideias, ele encerra também a possibilidade de se tornar todos os sujeitos particulares, não apenas por um ato da imaginação que o conduziria a uma espécie de objetivação dos outros sujeitos, mas ainda por uma espécie de realização interior, em sua própria consciência, de todos os possíveis não empregados que lhe permitem, por uma operação que é a única forma de conhecimento que possamos aplicar a outrem, tornar-se eles, permanecendo até um certo ponto porém nós mesmos.

73. Reflexividade

O eu puro por sua vez pode se tornar um objeto para uma reflexão.

Mas é possível também à reflexão pensar o sujeito puro que não é mais tal sujeito particular. Há, portanto, um poder pelo qual ela o supera. E sem dúvida, dir-se-á que superar o sujeito puro é ainda um ato do sujeito puro, que redobra por assim dizer sua operação sobre ela mesma, como era ainda o sujeito psicológico que cumpria a operação pela qual se tornava ele mesmo um sujeito puro sem cessar por isso de ser um sujeito psicológico, o que seguramente é verdade. Mas esta superação não encontra porém sua expressão senão se, como o sujeito individual não pode se pensar como individual senão por um ato que, embora cumprido pelo indivíduo, não vem do indivíduo, da mesma forma o sujeito puro, no momento em que se pensa ele mesmo como um sujeito finito que não é tal sujeito finito, como um centro de perspectiva que não é tal centro de perspectiva, supõe uma operação nele que é uma limitação de uma subjetividade infinita, uma tomada de perspectiva num horizonte que as torna possíveis e que as compreende todas, mas que não comporta nenhuma.

74. Perenidade

O movimento reflexivo tem um caráter de perenidade; é sempre o mesmo e sempre novo.

Não é preciso pensar que o movimento reflexivo se faz uma vez por todas no início da pesquisa, e que em seguida basta caminhar adiante, como se o ponto de partida estivesse definitivamente assegurado. Mas este ponto de partida, pertence-nos sempre reencontrá-lo. Cada problema que podemos nos pôr consiste em pôr um objeto em relação com um ato do espírito que descobre, de algum modo nele, uma resposta a uma questão que havia ele mesmo posto. Na explicação do real, vamos do dado à operação que o explica, isto é, da resposta à questão, ao invés de proceder segundo a ordem inversa. A ciência põe os termos particulares em relação uns com os outros, a filosofia põe cada um deles em relação com a unidade do espírito, e só os põe em relação uns com os outros por via de consequência. O movimento reflexivo é, portanto, o movimento constitutivo da consciência: ele tem um caráter de perenidade, é sempre o mesmo, embora recomece sempre e que seu objeto seja sempre novo.

75. Si

A reflexão é sempre reflexão sobre si.

O próprio da reflexão é tomar por ponto de partida o objeto com o qual se confundia primeiro o próprio ato do pensamento. Ela é o próprio ato pelo qual o sujeito se destaca da experiência. Mas não é aí senão uma operação preliminar, pois se pode dizer que sua função própria é descrever o sujeito, mas mantendo seu caráter próprio de sujeito, isto é, sem reduzi-lo a um objeto. Então a reflexão faz aparecer três aspectos diferentes do sujeito que estão implicados um pelo outro e inseparáveis: é o sujeito individual que está em correlação com o mundo sensível, o sujeito puro que pensa o sujeito individual e que está em correlação com o mundo das ideias e com o mundo formado pelos outros sujeitos, e o sujeito absoluto, que não poderia se pôr ele mesmo como um centro de perspectiva, que está em correlação com o mundo dos valores, e que funda ao mesmo tempo a possibilidade do desenvolvimento indefinido de todos os sujeitos particulares e de sua intercomunicação.

76. Interioridade

Tem-se o direito de empregar a palavra interioridade para caracterizar o sujeito, embora esta palavra só pareça ter sentido como o correlativo da palavra exterioridade abolindo-a; mas no limite o sujeito não tem conteúdo; tudo lhe é exterior.

Criticou-se frequentemente a palavra interioridade no emprego que dela se faz para designar a consciência, pois esta palavra só tem sentido, diz-se, em relação ao espaço e implica sempre um continente e um conteúdo. Só tem, portanto, sentido por oposição ao que lhe é exterior e que lhe é porém homogêneo de alguma maneira. Mas a interioridade é a presença de si a si, como a exterioridade é a presença a si de outra coisa que si. É por isso que a interioridade pura é uma interioridade sem conteúdo: ela é a de um ato que só existe por seu cumprimento. Ao inverso do que se pensava, a saber que o mundo inteiro é interior à consciência, conviria antes dizer que no limite e em sua essência própria, não há nada que lhe seja interior e que todo o resto lhe é exterior, tanto seus próprios estados quanto os objetos que estão no mundo.

77. Ato

Tem-se o direito de empregar a palavra ato, embora evoque sempre um efeito, mas este exprime aqui um limite onde o produto do ato se abole.

Pergunta-se também se se pode identificar a consciência com um ato, pois todo ato parece correlativo de um efeito, de tal sorte que no momento em que o produz, é um objeto entre todos os outros. Assim a interioridade de nossos próprios estados poderia ser considerada como uma exterioridade em relação à consciência pura. Mas, da mesma forma que esta consciência reduz, no limite, a interioridade à sua própria operação, poder-se-ia dizer também que a consciência, se a tomamos no momento em que não é nada mais que a própria criação de si mesma e não um objeto que tenta já apreender sob seu nome, se reduz precisamente a um ato sem efeito, ou cujo efeito não se distingue do próprio ato e se abole neste ato, na medida em que é mais perfeito e mais eficaz.

78. Nomeação

Pode-se aplicar a palavra "si" ao sujeito absoluto como a palavra "eu" ao sujeito psicológico e a palavra "eu" ao sujeito transcendental.

É difícil, como o fez Fichte, reservar a palavra "eu" para a consciência absoluta, pois o "eu" reside precisamente na relação dos três modos da consciência e é por isso que convém de uma maneira privilegiada ao sujeito transcendental. Sem dúvida pode-se dizer que no momento em que a consciência psicológica se torna um objeto para a consciência transcendental (graças a uma operação que é artificial e ilegítima, pois, se fosse um objeto verdadeiro, cessaria também de ser um sujeito), o sujeito psicológico poderia portar o nome de "mim". Mas posso falar então do "eu" da consciência absoluta? Faço também dele um objeto desde que me apercebo que tendo para ele sem coincidir com ele. Posso, portanto, chamá-lo um "si" para mostrar que funda o "mim" psicológico e o "eu" transcendental. Mas não é preciso esquecer que é porque é um sujeito concreto e único, e não um sujeito em geral como o sujeito transcendental, que constitui pelo intermédio do "eu" transcendental a condição de possibilidade de todos os "mim" particulares.

79. Agente

O sujeito não é um espectador puro.

Quando se define o sujeito, considera-se-o habitualmente como sendo apenas o sujeito da representação; e mesmo se a construiu, é ao fim seu espectador. Mas o sujeito é espectador e ator ao mesmo tempo; e estes dois aspectos de sua natureza não podem ser dissociados. Pois só é espectador desta parte do mundo que não criou ele mesmo, mesmo se lhe constrói a representação. De tal sorte que este mundo não é para ele senão uma aparência ou uma ideia; mas este próprio fato de que não é adequado ao mundo, e que explica suficientemente a necessidade mas também a imperfeição e o inacabamento do conhecimento, é a contrapartida deste outro fato de que é ele mesmo um agente no mundo, que contribui para criar o mundo criando-se a si mesmo, mas que é sempre superado por ele. O sujeito só é, portanto, espectador porque é também agente e só é espectador a fim de permanecer ainda solidário de tudo o que, no mundo, transborda seu ser próprio, isto é, sua operação.

80. Atualização

Cada sujeito individual atualiza um dos aspectos do objeto real.

O sujeito transcendental só pode dar conta do que, na representação do objeto, é comum a todos os sujeitos, isto é, precisamente de seu conceito. Mas o objeto é uma realidade única e concreta, isto é, que porta nela uma infinidade de caracteres. Ora estes caracteres, enquanto o objeto é propriamente um objeto, isto é, só tem sentido para um sujeito, só podem ser postos em evidência e mesmo existir por uma infinidade de sujeitos individuais, dos quais cada um atualiza um aspecto desta riqueza ao mesmo tempo indivisível e inesgotável. De tal sorte que a existência de um só objeto particular exige não apenas um sujeito individual com o qual sustentará relações definidas no mundo dos fenômenos, mas todos os sujeitos diferentes dos quais o sujeito transcendental exprime a condição geral de possibilidade.

81. Transcendência

O sujeito que julga o homem e que dá sua significação ao homem está ele mesmo acima do homem.

Quando se eleva acima do sujeito psicológico para pôr um sujeito que o supera e que só existe no ato pelo qual se põe ele mesmo, é-se tentado a pensar que este sujeito é o homem, quando mostramos que é o sujeito finito em geral do qual o homem já é uma determinação. O homem como tal é sempre um objeto e não um sujeito. É por isso que o homem não é seu fim para si mesmo; ele é, em relação ao sujeito transcendental, o que o corpo é em relação ao sujeito psicológico. E é por isso que o homem, como o corpo, deve sempre ser superado, ele é o caminho da vida do espírito. É ao mesmo tempo um obstáculo e um instrumento, um ponto de parada e um ponto de partida, só podemos julgar o que é e dar sua significação ao que pode ser pela ação de um sujeito que o supera, e que é o sujeito transcendental, mas que volta seu olhar para o sujeito absoluto, da mesma maneira que o sujeito psicológico aprendia a tomar a medida do corpo ao qual estava acorrentado, mas voltando seu olhar para o sujeito transcendental.

82. Indeterminação

O sujeito em geral é também um sujeito indeterminado: é por isso que tem relação com todos os possíveis, isto é, que é, se se pode dizer, a sede da liberdade.

O sujeito em geral que não é ainda tal sujeito é, portanto, um sujeito indeterminado, mas porta em si a possibilidade de todos os sujeitos particulares. E pode-se dizer que nossa vida inteira não é nada mais que uma escolha ao mesmo tempo intemporal e sucessiva entre estes diferentes sujeitos possíveis. É por esta escolha que se constitui o ser que seremos um dia, e que só será acabado, ao menos na experiência de que dispomos, no dia de nossa morte. Todos estes possíveis, o sujeito transcendental os haure em sua própria relação com o sujeito absoluto. É no sujeito transcendental, por conseguinte, que se concentram todos os problemas que são inseparáveis da liberdade. Pois não é nada antes de agir, e mesmo não é nada mais que sua própria operação. Mas esta operação o determina, de tal sorte que está sempre a meio caminho entre uma possibilidade que lhe pertence isolar para atualizá-la, e sua própria atualidade, isto é, entre a indiferença e a necessidade.