Começo

Capítulo II - Primeiro começo

21. Circularidade

A filosofia começa e se termina com o ato da reflexão.

O ato da reflexão não é um ato primeiro. E o próprio nome que lhe damos supõe uma realidade da qual se separa a fim de nos permitir compreendê-la. Todavia, nada sabemos desta realidade senão pelo próprio ato que dela nos destaca. De tal sorte que não podemos pô-la anteriormente à reflexão que a faz aparecer na operação pela qual se lhe aplica e já a ultrapassa. Não há reflexão sem objeto, mas não há objeto senão para ela. E a filosofia se termina no ato da reflexão: não há realidade que a reflexão possa nos descobrir e na qual viria um dia se desfazer, o que consumaria, com sua própria ruína, a ruína da própria filosofia. Esta ambição seria contraditória, pois uma realidade que ela encontra só existe para ela e desaparece com ela. O que basta para explicar como a reflexão, cujo papel é nos mostrar o real, é tida por incapaz de criá-lo, embora acrescentando-se a ele, ela lhe acrescente, e produzindo-o à luz, ela pareça produzi-lo.

22. Originariedade

A reflexão é uma operação originária que não tem ela mesma origem.

É impossível atribuir à reflexão qualquer origem: seria à reflexão empreendê-lo. Ela é o primeiro começo de toda explicação e da explicação de si mesma. Só se pode descrevê-la. Ainda é ela mesma que se descreve. O que prova que ela é a própria consciência se apreendendo em seu exercício puro, não, como se diz, tomando seu ato próprio como objeto, mas considerando-o em sua relação com qualquer objeto. Pode-se propor uma origem psicológica ou histórica da reflexão: dir-se-á então que ela supõe, como seu nome indica, um obstáculo sobre o qual vem se chocar a tendência e que faz nascer em nós a representação do objeto e o problema que ela põe. Mas como falar de tendência e de obstáculo senão pela reflexão que, já, se analisa? Tomada em si mesma ela é uma iniciativa gratuita, mas que, desde que age, faz aparecer as condições de sua ação, e o próprio mundo que a sustenta e ao qual se opõe. É inverter a ordem verdadeira pôr primeiro um tal mundo do qual se pretenderia fazê-la sair.

23. Afirmação

A reflexão não pode ser confundida com a negação.

A ligação da reflexão e do obstáculo conduz a pensar que a reflexão é um movimento negativo. O obstáculo nega a tendência e a obriga a refluir sobre si mesma engendrando a reflexão. Mas é a reflexão que descobre a tendência e ela a afirma, ao invés de negá-la, mas sem se confundir com ela, e examinando-a, isto é, ultrapassando-a sempre. É o mesmo do mundo tal como se oferece a nós numa primeira experiência: refletir não é negá-lo, é primeiro se apercebermos que está posto e por conseguinte pô-lo. E a reflexão é muito menos uma afirmação suspensa que uma afirmação disponível, exigente e que busca se fortificar indefinidamente. É o que se quer exprimir dizendo que ela é a negatividade da negação, o que quer dizer que ela abole o que há de limitado em toda afirmação, mas pondo porém nesta afirmação o que há nela de afirmado. Na dúvida, ela experimenta, não (como Descartes deixava crer) a liberdade, mas seus entraves. Ela não põe mesmo o mundo entre parênteses, pois ele está sempre ali, nem que seja senão como o problema que nele ela põe.

24. Fecundidade

A reflexão não é ela mesma nem estéril nem suficiente.

Considera-se-a erroneamente como estéril porque se supõe que todo o real a precede, que no momento em que dela se separa ela não pode fazer nada mais que redobrá-lo. Mas além do fato de que é este redobramento que é a própria consciência, é evidente que é pela reflexão que este real aparece como tal. De tal sorte que se ela dele se separa, é para fazer dele o próprio objeto ao qual se aplica. Mas então não é preciso concluir que o real é o efeito de sua operação, e que é ela que o constrói? É assim que o real ora foi considerado como anterior ao ato reflexivo e ora como posterior a este ato. Se é assim, a reflexão deve ser capaz de se bastar. Mas isto não é verdade tampouco, pois embora o real só se descubra à reflexão, ela o põe precisamente como um objeto que descobre, e não como um objeto que cria: a atividade reflexiva se põe ela mesma como não criadora. Nesta descoberta, ela não pretende nem esgotar o objeto nem lhe ser adequada, embora só ela possa compreendê-lo e atingir seu sentido. Ela mesma enfim nunca se põe isoladamente, mas como solidária da totalidade do real sem o qual não se exerceria e de uma atividade total que a alimenta e que ela especifica.

25. Natureza

A reflexão, no momento em que dela se separa, nos descobre a natureza sob seu duplo aspecto: como espontaneidade e como dada.

É a reflexão, tornando-se independente da natureza, que nos permite pensá-la como natureza. Mas a palavra natureza tem dois sentidos opostos e porém solidários, que se reencontram em todos os empreendimentos da reflexão e na própria estrutura do mundo: ela é ao mesmo tempo uma espontaneidade criadora e um espetáculo que nos é dado. Estes dois aspectos da natureza correspondem na própria reflexão:

1° À atividade de que dispõe e que deve se separar de uma atividade de que não dispõe e sobre a qual parece que ela mesma está enxertada;

2° À impossibilidade onde está de se contentar ela mesma com este caráter de atividade que está nela, isto é, à necessidade onde está de exigir um objeto ao qual se aplica, do qual se pode dizer não que a limita, mas que a realiza.

Este objeto, que não é criado por ela, não pode ser para ela senão um objeto de espetáculo: a natureza considerada sob este aspecto, é o próprio mundo que temos sob os olhos.

26. Constituição

A reflexão é constitutiva de mim mesmo e do mundo.

Estes dois nomes de natureza e de mundo envolvem a totalidade do real: assim se pode dizer indiferentemente que tudo é objeto e que tudo é vida. A reflexão então se coloca fora do objeto e da vida: e é por isto que é capaz de pensá-los. Ela constitui assim o campo de uma experiência infinita, que lhe traz sempre alguma descoberta nova. O mundo e a vida não cessam de se desenvolver sob seus olhos em sua relação com ela, que lhe permite reconhecer as relações interiores de seus elementos entre si. O próprio eu faz parte deste mundo, ele participa desta vida. A reflexão que o eu sustenta o toma ele mesmo como objeto: sua própria subjetividade é um objeto para ela em relação com todos os outros objetos, no meio dos quais é preciso situá-lo como um centro original de perspectiva, como um foco de ação pessoal, longe que o resto do real possa a ele se reduzir.

27. Privilégio

O eu é um objeto para a reflexão mas um objeto privilegiado, o único que ela pode esperar resolver em sua própria operação.

O eu permanece porém o objeto privilegiado da reflexão e mesmo encontramos aqui, pela primeira vez, um círculo que é característico de todos os empreendimentos da reflexão. Pois podemos dizer ao mesmo tempo que é o eu que reflete e que a reflexão toma o eu por objeto. É nesta relação da reflexão e do eu que reside o próprio centro do problema da reflexão, e sem dúvida do próprio problema do Ser. É aqui que a reflexão nos revela sua essência mais profunda. E pensa-se frequentemente que não há com efeito reflexão senão do eu sobre o eu, ou que a reflexão é o eu refletindo, ou mais exatamente ainda se refletindo. Examinamos aqui uma reflexão total, onde o universo inteiro se oferece a nós para ser compreendido. Mas o nó da reflexão reside em sua relação com o eu e com o mundo do qual faz parte: pois enquanto o mundo, do qual a reflexão se destaca, tende na mesma operação a se destacar também dela, não é assim do eu. Pois ele aparece primeiro com efeito como natureza, mas à medida que a reflexão progride, o eu se abandona a si mesmo como natureza a fim de se solidarizar de uma maneira cada vez mais estreita com o próprio ato da reflexão.

28. Transtemporalidade

Assim como a reflexão nos separa do objeto ao qual porém se aplica, ela nos separa do tempo no qual porém se exerce.

Quando se considera a reflexão em relação à sua aplicação, diz-se que tem um objeto, quando se a considera em seu exercício, ela é ela mesma uma operação temporal. Mas ela se separa do tempo como se separa do objeto. Como se aplica ao objeto em geral, isto é, a todo objeto possível, pensa também o tempo em geral, e não apenas o tempo no qual se exerce. Ela lhe deixa seu caráter próprio, que é de não ser um objeto, mas a dimensão do movimento e da vida. E como a reflexão é subjetiva, embora sempre ligada ao objeto, diremos também que ela é intemporal, embora sempre ligada ao tempo. E seria preferível ainda denominá-la trans-temporal.

29. Inversão

O ato da reflexão é denominado inversão quando se o considera sob seu aspecto intelectual, e conversão quando se o considera sob seu aspecto voluntário.

No tempo, o caráter original da reflexão se manifesta sob uma forma nova. Pois, na medida em que é intemporal, ela exprime no tempo, se se pode dizer, o ponto de vista da eternidade. Mas na medida em que se exerce no tempo, ela cessa de lhe estar sujeita, isto é, de sofrer-lhe o curso. Ela é, portanto, sempre marcada por uma interrupção ou uma retomada. É aí uma espécie de inversão do tempo, onde a reflexão, pondo sem cessar em questão tudo o que é, é atenta não mais ao que procede, mas àquilo de que procede. Ora, enquanto a reflexão se aplica a um objeto, isto é, enquanto é inteligência, ela é uma inversão do real; ela vai do efeito à causa, e não da causa ao efeito: ela é a manifestação da causa. Enquanto a reflexão se distingue da espontaneidade, mas lhe permanece ligada, isto é, enquanto é vontade, ela cessa de obedecer à pressão do desejo, ela o arranca à natureza, buscando por trás dele o valor que supõe, mas que só ela pode pôr: ela é uma conversão.

30. Regressão

A reflexão é sempre regressiva.

As palavras inversão e conversão marcam tão bem quanto a palavra reflexão ela mesma esta ação de retorno, esta colocação em questão da natureza ou do objeto que nos obriga a remontar do condicionado à condição, sem que este movimento, parece, possa jamais ser suspenso. Pois a condição torna-se um novo ponto de aplicação para a reflexão, o que justifica a censura de impotência que quase sempre lhe fazem. Mas isto só seria verdade se a condição fosse homogênea ao condicionado. Pois esta regressão, embora possa sempre recomeçar, não consiste em percorrer ao contrário todos os termos de uma série que, ela mesma, não teria termo. Ou antes esta infinidade é o sinal da fecundidade do ato reflexivo, que está inteiro presente em seu primeiro movimento. Pois o que nos descobre com efeito é o sujeito, que, pondo-se a si mesmo, põe também tudo o que pode ser posto, de tal sorte que a reflexão, que é um redobramento sobre o sujeito, nos entrega, no próprio sujeito, que, é verdade, não cessa de se aprofundar, a origem e o fundamento de tudo o que é.

31. Superação

Remontando o curso do tempo a reflexão supera o tempo.

Esta regressão, que parece se operar no tempo, é destinada apenas a nos permitir dele nos evadirmos. Pois, de uma parte, o próprio da regressão é aniquilar a progressão no momento mesmo em que vem recobri-la. A ordem da inteligência e a ordem da ação são inversas uma da outra, mas porém idênticas, uma exprime apenas na língua do fenômeno o que a outra exprime na língua da ideia. A descoberta da ideia pela reflexão é ela mesma um progresso num tempo novo, que é o do pensamento e em relação ao qual o tempo da ação poderia ser considerado como uma regressão. A superposição destes dois tempos nos obriga não a abolir o tempo, mas a passar além. De outra parte, poder-se-ia dizer que esta regressão no tempo é uma espécie de recusa do tempo; buscamos nos dele desligar. A reflexão nos faz sair do tempo, mas permanecendo-lhe ligada, de tal sorte que possa dar conta, pelo intemporal, de todo o temporal.

32. Inscrição

A reflexão não cessa de se separar de todo objeto ao qual se aplica mas não da totalidade do ser na qual se inscreve.

No momento em que a reflexão cumpre este próprio ato pelo qual se constitui separando-se do real, ela introduz na totalidade do ser seu ser próprio. Pode-se opô-la ao real, reservando o nome de real ao dado, pois ela mesma só é no ato que a faz ser. Neste sentido, pode-se dizer que é irreal. Mas ela não é estranha ela mesma ao ser: não basta dizer que entre o ser e o nada não há nada. É o nada que não é nada. Há, portanto, um ser da reflexão cujas propriedades será preciso determinar entre todos os aspectos do ser. E mesmo, é próprio da reflexão operar esta distinção, determinar o caráter original de cada um deles, fixar entre eles seu próprio lugar. É mesmo uma tendência natural do espírito pensar que o ser primeiro reside no próprio ponto onde a reflexão se exerce e que todos os outros modos do ser são derivados dela e só têm sentido em relação a ela. Contudo, não se saberia pôr em dúvida que a reflexão não é ela mesma um primeiro começo absoluto, que no momento em que se exerce, ela descobre sua solidariedade com os outros modos do ser dos quais depende, como eles dependem dela.

33. Possibilidade

A indivisibilidade do ser, que faz dele para a reflexão um infinito de possibilidade que busca atualizar, faz desta possibilidade infinita o próprio ser da reflexão.

O Ser é indivisível, e a reflexão não se separa dele para pensá-lo: ela se inscreve nele ao invés de dele se destacar. Mas seu caráter original é precisamente envolver nela de certa maneira a totalidade do ser no interior do qual porém está tomada. Ela não o contém, mas se lhe aplica. Antes mesmo de ser seu objeto real, ele é seu objeto possível. E mesmo sua função própria é transformar todo objeto real em objeto possível, embora a possibilidade que põe ultrapasse singularmente a objetividade que atinge. Ela se move inteira sobre este duplo caminho que vai do real ao possível e do possível ao real. E sua dupla tarefa é buscar a possibilidade de cada coisa e atualizar esta possibilidade. O que não é uma tarefa vã se é por aí, como mostra a proposição XXXIV, que o eu consegue se introduzir ele mesmo no mundo cooperando à ação criadora. Esta possibilidade do todo é uma forma de ser que se opõe ao ser dado, mas não se define senão por sua relação com ele: a própria reflexão se define como o próprio ser desta possibilidade infinita. E se se diz que ela produz esta possibilidade ao invés de constituí-la, desconhece-se que a possibilidade não tem ela mesma sentido senão pelo ato que a faz ser. Ela é, portanto, um ato da inteligência. Se se insiste dizendo que ela é o poder de produzir esta possibilidade, nada se ganha, o poder sendo por sua vez um possível que os compreende todos. E a consciência é uma experiência da possibilidade, que a reflexão não cessa de experimentar e de atualizar.

34. Engendramento

A conversão do real em possível é o meio pelo qual o eu se engendra a si mesmo graças à oposição e à correlação do entendimento e do querer.

Esta dupla conversão do real em possível e do possível em real apareceria como de uma esterilidade absoluta, se não permitisse precisamente ao eu fundar por aí sua independência e sua própria existência. O eu é coextensivo ao Ser indivisível, mas dele se destaca porém e de tal maneira que, sob o nome de entendimento, esteja em relação com ele, sem ser ele, e que dele forme o espetáculo, isto é, que dele adquira a representação ou o conhecimento, mas que não permaneça porém espectador puro, e que sob o nome de querer, assuma o próprio ser enquanto é a origem de si e de tudo o que depende de si. A oposição e a conexão do entendimento e do querer efetuam uma distinção no ser entre o ser que conheço, que é sempre exterior a mim, e o ser que me dou por minha própria operação, que é o ser que sou, sem prejuízo da interação entre essas duas funções, que impede que a unidade do ser seja jamais rompida.

35. Interrogação

A reflexão é uma interrogação absoluta mas que espera sempre da experiência alguma nova resposta.

Não se compreenderia que a reflexão pudesse ser definida como uma regressão, se não fosse primeiro uma interrogação. Mostrou-se frequentemente que o próprio da reflexão é pôr em questão o real, é por isso que dela se separa, mas não se separa dele porém realmente, pois ele está ali como o próprio problema que se trata de resolver. A reflexão muda precisamente o real em problema. Mas isto quer dizer que se retorna do próprio real à sua condição de possibilidade. Tal é a razão pela qual o tempo, ao menos no movimento que retorna do presente para o passado, é de algum modo o meio que a reflexão inventou para se prosseguir. Somente se a reflexão só tem sentido porque é uma interrogação, a esta interrogação ela pede uma resposta, e, esta resposta, ela não pode fornecê-la ela mesma. Ora, só a experiência pode fornecê-la. A reflexão solicita e prepara uma experiência destinada a responder a todos os problemas que põe.

36. Afirmação do eu

O eu da recusa só tem sentido pelo eu da afirmação.

Pensa-se frequentemente que o eu se constitui ele mesmo por este movimento de separação ou de recusa no qual, cessando de estar absorvido pelo universo, ele o nega, para instituir nesta própria negação sua existência independente. É assim que se interpreta frequentemente a dúvida cartesiana, sobre a qual se demora com complacência quando se a converte numa recusa onde se vê a marca de uma liberdade e de uma espiritualidade que não se deixam escravizar. Teme-se mesmo que este não se transforme um dia num sim, como se, nesta transformação, se engajando de novo, ele recomeçasse a se alienar e a se pôr sob o jugo. Não se sabe se há aí mais ilusão ou mais vaidade. Pois o eu só se separa em aparência deste mundo cuja lei sofre no próprio exercício deste poder pelo qual imagina que a recusa. A própria negação só tem sentido como a condição de uma afirmação, que nos dá mais satisfação que aquela que se repele, além do fato de que esta negação é ela mesma uma afirmação indeterminada, que vale melhor que todas as outras por sua universalidade, e que deve buscar se reencontrar nas afirmações particulares ao invés de excluí-las.

37. Reduplicação

A reflexão é uma espécie de reduplicação que, sem jamais fazer dela um objeto para si mesma, a encerra numa espécie de círculo onde mostra seu caráter de ser um primeiro começo.

A própria palavra reflexão caracteriza bem a exigência de uma dada que lhe serve de ponto de partida, e desta reduplicação pela qual, depois de tê-la posto em questão, ela tenta recriá-la por uma operação que cumpre. Mas esta reduplicação não é estéril. Pois não há identidade entre o objeto que serviu de matéria à reflexão e o objeto que ela reencontra, embora a reflexão exija que haja entre eles um encontro que mostre como se acordam. Mas este acordo não é uma coincidência, senão na medida em que a aparência objetiva adquire uma espécie de transparência a respeito de sua essência subjetiva. Todavia, não é preciso se contentar em dizer, como se faz frequentemente, que a reflexão produz assim um objeto novo, que pode se tornar por sua vez a matéria de um segundo ato de reflexão, e que este progresso pode se prosseguir indefinidamente. Pois este movimento de regressão prosseguido ao infinito, ao invés de nos pôr em busca de um primeiro termo que pudesse explicar todos os outros, nos mostra a presença em cada um de seus movimentos de um ato do espírito que é um primeiro termo onipresente além do qual não se remonta. Assim poder-se-ia dizer, seja que a reflexão cria uma espécie de círculo onde atesta a impossibilidade onde está de se superar, pois a reflexão da reflexão ela mesma não traz nada à reflexão, seja que a reflexão não pode ser convertida, senão de uma maneira verbal, num objeto ao qual se aplicaria uma reflexão nova, de tal sorte que desde que entra em jogo, ela tem também a consciência deste ato do espírito que é sua própria essência, e que não tem além.

38. Círculo

O círculo característico do termo primeiro se exprime pelo pensamento do pensamento, o querer do querer e o amor do amor.

A expressão "pensamento do pensamento" nada acrescenta ao pensamento, senão a consciência que dele temos. É este círculo do pensamento pensante e do pensamento pensado, onde nenhum dos dois termos tem privilégio em relação ao outro, pois este pensamento pensado não seria de modo algum um pensamento se não fosse o pensamento pensante se considerando ele mesmo no próprio ato do pensamento, e não em seu objeto (de tal sorte que é por pura metáfora que se diz que o pensamento pode fazer de si mesmo seu próprio objeto), que se reencontra ainda no querer do querer sem o qual não haveria querer e que deixa o querer indivisível, embora dele faça nosso querer, e também do amor do amor, que não se distingue tampouco do amor que temos pelos seres, mas que porém exprime admiravelmente, como se vê na expressão "amar amar", esta auto-gênese do amor que constitui sua essência mais profunda.

39. Começo

A reflexão é o primeiro começo de toda experiência, mas, na própria experiência, todo objeto pode ser tomado indiferentemente como começo.

A reflexão é o primeiro começo de toda experiência, ou antes o ato pelo qual toda experiência é assim suspensa a um primeiro começo do qual se pode dizer que recomeça sempre, ou que dele dispomos sempre. Isto é dizer que todo primeiro começo reside no ato de um pensamento, ou que o ato deste pensamento é ele mesmo independente do tempo. Por outro lado, se tomamos o próprio conteúdo da experiência, pode-se dizer que é sempre dado à nossa consciência como o ponto de partida da reflexão. Mas, no interior desta experiência, há um termo privilegiado: qualquer termo situado em qualquer lugar ou em qualquer tempo pode servir igualmente de termo primeiro à reflexão, porque é impossível pô-lo sem pôr a experiência inteira. Nele, é menos tal experiência particular que a possibilidade de toda experiência que adotamos como origem da reflexão: o que justifica num sentido o método adotado por Kant.

40. Ser subjetivo

A palavra ser só pode ser tomada num sentido subjetivo: pertence ao ser o que é em si e tem relação consigo.

É evidente que a palavra ser compreende em sua extensão ao mesmo tempo a subjetividade e a objetividade: todavia, não se pode negligenciar que é nela que estas se distinguem e se opõem. Além disso, não se pode desconhecer que estes dois termos, malgrado a relação que os une, não podem ser situados no mesmo plano. A subjetividade possui, com efeito, um indiscutível privilégio: pois se define como o que existe em si e para si, embora não se revele a si mesma senão em seu contraste com uma exterioridade que repele, por assim dizer, fora de si. É o único meio que tem de se definir a si mesma, menos em sua essência que em sua finitude. Mas então, a exterioridade é o que só existe para o eu e em sua relação com o eu. De outro modo ela seria ela mesma uma interioridade. É esta relação com o eu que constitui sua essência enquanto exterioridade, o que equivale a dizer que a exterioridade como tal não tem essência. Por conseguinte, mesmo se a objetividade e a subjetividade não podem ser isoladas uma da outra, nesta própria relação a subjetividade demonstra sua prioridade lógica e ontológica: a exterioridade a supõe e a limita, ao invés de lhe ser igual e correlativa.

41. Descoberta

A reflexão é a descoberta da subjetividade do Ser.

Quando a reflexão começa, ela se manifesta sempre sob a forma de uma separação a respeito do objeto e de uma colocação em questão deste objeto. Mas que é este ser que põe todo objeto em questão e que não é ele mesmo um objeto? Somos bem obrigados a dizer que é ele mesmo um sujeito, isto é, um ser inteiramente interior a si mesmo, ou que se dá o ser por um ato que só ele pode cumprir. Antes de cumprir este ato, não era um sujeito, embora pudesse ser um objeto para um outro sujeito. Mas, descobrindo-se ele mesmo como sujeito, ele descobre que todos os objetos só têm sentido e existência para ele e em relação a ele. Por conseguinte, ele só apreende o ser em si mesmo sob a forma de uma subjetividade, que é a origem deste ser objetivo que só tem sentido por sua relação com ele, e que tira de sua própria subjetividade a própria possibilidade que tem de ser posto como um objeto. Assim, é preciso bem dizer que a reflexão nos permite descobrir não apenas a subjetividade do ser, mas, nesta própria subjetividade, a origem de toda objetividade.