Intenção

Capítulo III - Intenção e Atenção

50. Intencionalidade

A consciência deve ser definida mais por sua intencionalidade do que por seu conteúdo.

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A filosofia contemporânea foi marcada por um abandono desta linguagem clássica que atribuía à consciência um conteúdo. Pois a relação de continente a conteúdo só tem sentido no espaço, e a consciência que pensa o espaço não pode ser ela mesma espacializada. Dir-se-á, por conseguinte, que a consciência é intencional, e tentar-se-á determinar quais são os objetos que visa esta intenção e a maneira mesma pela qual eles se oferecem a ela quando lhe tornam presentes. Assim reintegra-se a distinção entre o ato e o dado que lhe responde, desfaz-se pela observação ela mesma a querela do idealismo e do realismo, reencontra-se o papel da finalidade característica da consciência, e da qual se compreende bem que ela possa estar ausente de seu objeto. Atinge-se na consciência uma atividade originária e criadora de si mesma, que participa da natureza do querer. Pode-se considerar a ordem e a metodologia como os produtos naturais desta atividade intencional. É o mesmo do sentido e do valor na medida em que ela é, não o efeito do sentido, mas sua justificação.

51. Particularidade

A intenção particular se refere sempre a uma consciência psicológica.

Entretanto, parece que a própria intencionalidade tem necessidade de ser deduzida. Trata-se de saber a que nível de consciência ela corresponde. Ora, é claro que a intenção está sempre em relação com uma escolha que fazemos, ou pelo menos com certa determinação ou limitação de nossa atividade orientada para um objeto possível, que responde no instante à direção mesma na qual ela se encontra engajada. Em outros termos, a intenção está por antecipação aplicada a um fim particular que está em correlação com um interesse atual, ela só pode portanto aparecer lá onde o sujeito, consciente daquilo que lhe falta, tende para ele, chama-o e o procura. Assim a intencionalidade põe bem em luz este caráter essencial da participação de dissociar um ato que é nosso mas que não pode se bastar, de um dado do qual ele tem necessidade para que não permaneça virtual e possa entrar no mundo e aí nos estabelecer. Mas esta intenção dirigida só pode sê-lo lá onde já temos a ver com um ser individual que possui já uma faculdade de desejar e de preferir, tão pura quanto se a imagine. De tal modo que a intencionalidade, desde que ela comece a se determinar mesmo potencialmente, só tem sentido para a consciência psicológica. Só ela é capaz de lhe fornecer estes fins concretos, dos quais se poderá perguntar qual é sua correlação com uma intenção definida.

52. Verdade

A consciência em geral pode ser considerada como intencionalidade de verdade e de valor.

Perguntar-se-á todavia se não existe uma intencionalidade da consciência em geral que não se aplicaria ainda a nenhum fim, mas produziria todas as intenções particulares a partir do momento em que viesse se encarnar numa consciência individual. E isso não parece contestável. Somente, se perguntamos de que ela pode ser intencionalidade, parece que ela só pode ser primeiro intencionalidade de conhecimento. Em sua forma mais pura, ela evoca objetos de conhecimento puro, isto é, ideias, e se é ela que permanece presente na intencionalidade cognitiva da consciência individual, é ainda para lhe permitir descobrir, no objeto sensível, a ideia mesma que lhe dá um sentido. E se se pretende que em sua relação com o sujeito absoluto, a consciência em geral é intencionalidade de valor e não somente de verdade, isso é verdadeiro sem dúvida também e permite compreender como, através do mais humilde desejo, a consciência individual persegue ela mesma algum reflexo do valor.

53. Temporalidade

A intenção está no tempo, a atenção está fora do tempo.

Mas esta intenção de uma verdade e de um valor que só se distinguem um do outro porque já nos referimos aí à oposição do intelecto e do querer, e que não são ainda tal verdade e tal valor, merece ela ainda o nome de intenção? Não há na intenção alguma impureza, visto que não se pode considerá-la como livre de todo interesse, e visto que já ela faz intervir o tempo, isto é, uma inadequação necessária entre um antes e um depois? Mas o espírito, em sua ponta indivisível, está acima de todo interesse, como está acima do tempo. Assim pode-se dizer que a intenção só é em relação à atenção senão uma atenção dividida, e que, já, entrou no tempo.

54. Atenção

A atenção é o ato inicial e fundamental da consciência.

A atenção é portanto primeira em relação à intenção, que é a forma derivada e já inserida no sensível. Eis as vantagens que ela apresenta, se queremos definir por ela o ato inicial da consciência:

1° Ela é indiscernível, parece, da consciência ela mesma: ela sempre marca seu despertar; desde que ela fraqueja, a consciência começa a se extinguir. Não temos a consciência de nada de outro modo senão por ela. Ao contrário, a intenção escapa frequentemente à consciência e pede para ser ela mesma objeto da atenção;

2° Ela está acima da inteligência e do querer, e ela só parece ser sua síntese, visto que é uma iniciativa geradora e primeira, porque é anterior à sua divisão;

3° Ela não é ela mesma determinada como já é a intenção. Toda atenção é atenção indivisivelmente a si e a tudo que é. Antes de ser dirigida, a atenção tem como qualidade essencial ser disponível;

4° Ela está pronta a acolher tudo que se oferece, e não somente, como se diz quando se a faz descer do plano transcendental sobre o plano psicológico, aquilo que tem para nós interesse. Em vez de pressupor e suscitar este interesse, como se crê quase sempre, é ela que o encontra e que o descobre. Ela é uma abertura da consciência a respeito da totalidade do dado, sem que ela se deixe jamais guiar na direção mesma do olhar pelo desejo ou pelo preconceito;

5° Ela é o ato supremo da liberdade, pois a única coisa de que dispomos sem dúvida é desta atenção que é sempre um primeiro começo de si mesma, que nos pertence tornar sempre presente, que não consentimos em voltar para nenhum objeto privilegiado, mas que nunca perde de vista a totalidade do real, quaisquer que sejam as tarefas particulares às quais a consciência individual a faça servir desde que a subordina a uma intenção e empreende regular seu jogo;

6° A atenção é ela mesma sem conteúdo: só ela mereceria o nome de transcendental, se se pudesse destacar sua virtualidade pura, considerada no ato livre que dela dispõe, das formas psicológicas que ela toma na consciência de cada indivíduo; é pela intenção que a atenção desce no eu empírico; é pela atenção que a intenção ela mesma se eleva acima dele. Vê-se bem com efeito que na atenção pura, não subsiste nada que possa ser dito me pertencer, pode-se todavia dizer que ela vem de mim, e mesmo que ela é eu, mas neste sentido onde eu me distingo eu mesmo daquilo que poderá jamais me pertencer a fim precisamente de que, por isso mesmo que ela me dá, eu possa me descobrir eu mesmo, isto é, me fazer aquilo que sou.

55. Superação

Há uma superação dialética da intenção na atenção.

Duas objeções podem ser ainda elevadas contra esta espécie de preeminência acordada à atenção onde se reencontram todas as vantagens acordadas à consciência intencional, mas superando-as:

1° Pode-se dizer que a consciência transcendental implica sempre uma perspectiva em geral na qual a atenção, se ela está a seu nível, não pode deixar de nos estabelecer. — O que é verdadeiro sem dúvida, mas ela discerne precisamente nela a presença de tal perspectiva em geral, e mesmo de uma perspectiva individual que a concretiza. Mas reconhecendo-a, ela cessa também de estar encerrada nela. Ela se situa ela mesma como um centro de referência num todo a-perspectivo do qual ela exprime a limitação, e onde ela reconhece o cheio daquilo que lhe falta;

2° Pode-se pretender que esta atenção ela mesma não é nada mais do que uma espera e que no momento em que ela é preenchida, ela nos conduz a uma espécie de empirismo onde os aspectos do real se descobrem a nós de maneira ocasional e fortuita. Mas isso não é verdadeiro, não somente porque ela é atenta às relações dos aspectos do real, tanto quanto ao conteúdo destes aspectos eles mesmos (e talvez se pudesse mostrar que são com efeito as relações que ela retém, em razão desta unidade que está nela, e que envolve por antecipação o todo de cada coisa e de todas as coisas), mas ainda porque, sendo o ato próprio da consciência, ela não é somente atenção a dados que lhe vêm de fora, mas atenção a si mesma e às condições de seu exercício, de tal modo que sua atividade não é tanto espetacular quanto dialética, visto que ela não pode acolher nenhum aspecto do real (objeto, ideia ou existência) de outro modo senão determinando suas relações consigo mesma e com todos os outros.

56. Reciprocidade

Atenção e intenção se implicam e se chamam reciprocamente.

Gostaria-se de fazer uma reserva a propósito da intenção da qual seria preciso dizer que se ela supõe a atenção, esta todavia a implica e nunca passa sem ela. É que se apresenta muito frequentemente a intenção como se ela tivesse sempre um objeto distinto do sujeito, e que fosse, por assim dizer, seu correlativo. Não se poderá negligenciar todavia que a intenção mais profunda da consciência é aquela que toma ela mesma por objeto, mas sem fazer todavia um objeto dele. É esta intenção da intenção que é o ato essencial da consciência; ela está sempre em relação com um objeto, sem o que ela não seria nada, nem mesmo uma intenção. Mas considera-se-a então em sua fonte; então ela é o espírito mesmo considerado na caminhada pela qual ele se cria a si mesmo se descobrindo, o que não é verdadeiro da descoberta pela qual descobrimos outro objeto. Talvez fosse preciso dizer que se trata aqui de uma atenção à nossa intenção que, revertendo-se numa intenção de nossa atenção, constituiria o nó da consciência transcendental e da consciência psicológica.

57. Interioridade

A interioridade e a exterioridade não se opõem como se crê, pois a interioridade é um feixe de relações de exterioridade.

A oposição entre um dentro e um fora que se excluiriam um ao outro é muito simples e representa mal a relação da consciência e do mundo. A consciência não é nada se ela não é a consciência de um mundo, de um mundo no qual ela nos situa, mas por todo um conjunto de relações que ela estabelece entre ele e nós. Assim nossa aparente interioridade não é nada mais do que este conjunto de relações que temos com o mundo (onde somos ao mesmo tempo determinante e determinado) e que é único, se se considera que o centro mesmo onde eles vêm se cruzar, e que somos nós mesmos, é incapaz de se repetir. Assim a interioridade não seria a interioridade de nada, ela constituiria uma solidão impossível de romper, se ela não residisse neste feixe original de relações com o exterior, que nos torna ao mesmo tempo solidários do mundo e únicos no mundo. E se todo pensamento é pensamento do geral e permite ao conhecimento se constituir, o pensamento do único só pode ser sentido e vivido: é ele que é a consciência que temos de nós mesmos.

58. Relações

A intencionalidade deve ser deduzida das relações mútuas entre os diversos modos da consciência.

Os filósofos que reduziram a consciência à intencionalidade, tiveram sem dúvida torto de generalizar um caráter que exprime bem sua finalidade e sua orientação para um possível ao qual ela pede para se transformar em real: é aí talvez negligenciar todas estas descobertas que se oferecem a nós antes que a intenção tenha nascido, ou que a suscitam, e nos convidam, por conseguinte, a descobrir em nós uma intenção potencial da qual elas nos dão a revelação. É também acordar demais à ideia de certo desígnio que se encontraria em todas suas operações, e no qual o objeto, pelo menos pela necessidade que temos dele, se encontraria de antemão preformado. Pelo menos esta concepção tem a vantagem de esvaziar a consciência de todo conteúdo que a materializa e de representar bastante bem sua vida interior que oscila inteiramente entre dois movimentos opostos, um que nos porta para os modos particulares do eu individual, isto é, para o sensível, e o outro para o absoluto espiritual que é a fonte em nós de todos os valores. Esta intencionalidade tem sede ao nível do eu transcendental, que é mediador entre os dois outros. Mas ela é dupla, e porta nela a possibilidade de dois movimentos em sentidos opostos, ao mesmo tempo associados e concorrentes.

59. Ato

A consciência supõe sempre a correlação entre um ato e um dado: mas é limitar o sentido que se deve dar à palavra ato defini-lo como sempre intencional.

A consciência, que é um efeito da participação, não pode passar sem a oposição entre o ato, que marca nossa participação interior ao ser, e o dado, que marca esta espécie de acabamento do ato que não depende mais de nós, mas de uma resposta que o ser nos faz. Tal é também a significação que se entende dar à intencionalidade quando se a considera como a atitude característica da consciência e se a orienta para um objeto que vem se oferecer a ela, sem que se possa dizer que é ela que o determina: ela só determina sua aparição. Todavia a palavra intenção é talvez muito estreita para caracterizar o ato próprio da consciência: ela só tem sentido num plano psicológico onde já o tempo intervém, ela implica uma espécie de presunção do objeto no fim que serve para definir a intenção, e como uma adaptação realizada, ou exigida de antemão, entre a operação e seu efeito. O ato da consciência tem um caráter mais despojado: ele não é exclusivamente psicológico; ele não supõe um tempo que se desdobra entre seu ponto de partida e seu ponto de chegada; ele não implica nenhuma finalidade, mesmo desinteressada. Ele não antecipa de modo algum a posse que poderá nos dar. Ele é o exercício puro de uma potência do eu. Em sua forma mais perfeita, ele se parece com um jogo. E aquilo que ele nos traz não era nem previsto nem esperado, mas lhe corresponde todavia tão exatamente que não é nada mais do que o puro acolhimento da consciência a respeito de seu cumprimento mesmo.

60. Operação

A operação correlativa do dado está mais próxima da atenção do que da intenção mas supera ambas.

O ato primitivo da consciência não é a intenção, que acorda uma primazia ao tempo e à busca de um fim: a palavra atenção o exprime melhor, visto que a abertura é então mais desinteressada e mais perfeita a respeito daquilo que pode me ser dado. A palavra atenção designa sem dúvida um ato mais propriamente intelectual, mas ela desperta a intenção mais do que a supõe. Em sua forma mais pura: "atenção ao ser, atenção à vida", ela não contém nenhum privilégio a respeito de um aspecto particular do ser ou da vida. A intenção a determina por uma espécie de conluio com o desejo. A atenção está mais próxima do ato puro; mas este ato, na escala da participação, não cria nada, ele não é nada mais do que o acolhimento em nós da realidade. É ela que lhe desenha a forma, longe que ele lhe imponha a sua. E se se pensa que a palavra atenção está muito especificada ainda, e que não se pode conceber uma atenção sem objeto, então basta empregar a palavra ato enquanto ela designa a unidade mesma de uma consciência, que se cinde em operações diferentes, segundo a natureza do fim que ela procura atingir ou do objeto que lhe é oferecido para que ela o apreenda.

61. Liberdade

No ponto onde a liberdade se exerce da maneira mais perfeita, ela coincide com minha própria necessidade.

A liberdade, sendo um ato, nunca pode ser considerada como dada. Ou antes ela se dá a si mesma. O que quer dizer que ela deve se procurar antes de se encontrar. Mas, enquanto ela se procura, ela está ainda entravada. Ela não consegue se exercer; ela luta, parece, contra uma necessidade que a constrange até o momento em que ela encontra uma necessidade com a qual se identifica. Esta necessidade toda interior é, por assim dizer, a necessidade de mim mesmo; o difícil é descobri-la.

62. Assunção

A consciência ela mesma, em seu cume, não é mais consciência de mim, mas consciência do mundo ou, mais exatamente ainda, deste ato mesmo pelo qual o eu se faz assumindo o mundo.

Enquanto eu guardo a consciência de mim mesmo, o intervalo entre o eu e o mundo não cessa de se acentuar, de tal modo que me parece que devo renegar o mundo para encontrar o eu: tal é com efeito a tendência de um grande número de filosofias. Mas quando este intervalo se preenche, não se deve dizer que a consciência cessa, mas que ela se torna por graus mais perfeita. Então também, pode-se dizer que o eu se esquece, e que não é mais senão a consciência do mundo. Mas este ato pelo qual me torno consciência do mundo, é também o ato pelo qual me faço eu mesmo assumindo, por assim dizer, o mundo segundo minhas forças, e numa perspectiva que é minha própria. Esta consciência do mundo só se torna a consciência do eu quando já ela recomeça a fraquejar e a me separar do mundo. O esforço da filosofia foi durante muito tempo obter que o eu se oponha ao mundo: será logo obter que ele o reencontre.

63. Duplo sentido

A descoberta pode se fazer em dois sentidos, seja que aquele que parte do dado descubra a operação que o explica, seja que aquele que parte da operação descubra o dado que lhe responde.

Se a descoberta consiste sempre na correspondência da operação e do dado, vê-se sem dificuldade que é preciso necessariamente partir de um dos dois para mostrar como o outro se ajusta a ele. Assim acontece que seja o dado que se apresenta a nós primeiro, então remontamos para a ideia, isto é, para a operação que o explica, e que apresenta sempre uma maior generalidade do que ele, visto que ela é um ato que o espírito pode repetir e no qual, por conseguinte, o dado se despojou de seus caracteres concretos e particulares. É este movimento do espírito que se chama indução. Mas existe também o movimento inverso, que vai da operação ao dado e que nos faz crer que o espírito é criador (como quando se pensava que se podia passar da matemática à física por intermédio da física matemática). Esta marcha do pensamento é evidentemente uma marcha dedutiva. Mas quando a dedução não se contenta em encadear operações, isto é, quando ela chega ao dado, este dado acrescenta sempre à operação: ele constitui para a consciência uma verdadeira revelação. Tal é a razão pela qual se admitiu tão facilmente, ora que o mundo das operações nos fazia penetrar no único mundo real que o mundo dos dados nos dissimulava (como pensou o platonismo e em sua sequência todas as formas do idealismo), ora que o mundo dos dados gozava só da existência e que o mundo das operações era só uma espécie de superestrutura permitindo agir sobre ele e reconstruí-lo. Mas a participação mostra bastante claramente que o real está no ponto onde estes dois mundos se cruzam, a operação nos descobrindo a interioridade mesma de nossa participação, e o dado, aquilo que no real a supera e a acaba, permanecendo-lhe exterior e todavia presente.