Consciência
1. Relação
A consciência deve ser definida pela relação interna entre o sujeito psicológico, o sujeito transcendental e o sujeito absoluto.
A palavra sujeito é ela mesma um termo puramente abstrato que não designa nada mais que o centro em relação ao qual consideramos o real considerado em sua totalidade. O sujeito psicológico é o centro de uma perspectiva individual; o sujeito transcendental, o centro de toda perspectiva em geral; o sujeito absoluto, o centro sem perspectiva, não mais por conseguinte o centro abstrato de todas as perspectivas particulares, mas o centro concreto que as abole ao mesmo tempo e que as funda. Ora, onde está a consciência? Não certamente com o sujeito psicológico isolado que, no limite, não seria senão o epifenômeno do corpo, isto é, esclarecido e não esclarecedor, e incapaz de se fornecer a si mesmo sua própria luz; nem com o sujeito transcendental, do qual se pensa frequentemente que merece o nome de sujeito lógico e do qual só conhecemos a maneira como age por seus produtos; nem com o sujeito absoluto, que, quando se tenta isolá-lo do sujeito psicológico e do sujeito transcendental, aparece seja como idêntico à coisa em si, seja como o termo de uma aspiração e como um objeto de fé. Mas a consciência resulta, por assim dizer, de uma circulação entre estes três aspectos do mesmo sujeito. O sujeito psicológico reconhece sua própria individualidade no momento mesmo em que percebe sua limitação, isto é, onde o sujeito transcendental o toma como objeto e o supera; e o sujeito transcendental, por sua vez, só pode ser definido pela limitação do caráter perspectivo em geral que o faz ser, mas que o obriga ele mesmo a se superar. O que, numa linguagem mais elementar, implica que a consciência resulta sempre da relação viva que se estabelece em cada um de nós entre o indivíduo, o homem (ou mais justamente o ser finito em geral) e o ser absoluto, sem que seja possível atribuí-la a nenhum dos três termos senão em sua relação com os dois outros. Assim, noutro plano, a meditação teológica não acreditou poder atribuir a espiritualidade ao próprio Deus, senão pela relação interna que estabeleceu entre as três pessoas.
2. Imediatidade
O sujeito absoluto, precisamente porque não tem perspectiva sobre o real, só tem relação imediata com os outros sujeitos e não com os objetos.
Da proposição I, pode-se tirar esta consequência de que o sujeito absoluto, no momento em que o consideramos como a base e o cume do sujeito transcendental e dos sujeitos psicológicos, não pode mais ser como eles sujeito de um mundo formado por objetos reais, seja que se trate das ideias, seja que se trate das coisas sensíveis. Pois as ideias ou as coisas só aparecem na perspectiva de um sujeito em geral ou de um sujeito particular. Ao contrário, o sujeito absoluto só tem relação imediata com todos os centros de perspectiva que podem existir sobre o real e dos quais funda ao mesmo tempo a distinção e o acordo; as ideias e as coisas só têm sentido para ele através destas próprias perspectivas das quais é, propriamente falando, a razão de ser. De tal sorte que se pode dizer, na linguagem criacionista, que Deus não criou nem as ideias nem as coisas, mas que ao criar seres, isto é, pessoas, criou ao mesmo tempo o mundo das ideias, isto é, um mundo comum a todas as consciências, e um mundo sensível no qual cada uma delas exprime a visão original e irredutível que tem do mundo.
3. Dependência
Não há sujeito puramente psicológico que não tire do sujeito transcendental a consciência que tem de si mesmo.
Pode-se demonstrar que não há sujeito puramente psicológico, pela própria possibilidade, para o sujeito transcendental, de considerar o sujeito psicológico como um objeto se o reduz à sua pura essência psicológica. Então, segundo o vocabulário adotado universalmente hoje, dizemos que o sujeito psicológico cessa de ser um "eu" para se tornar um "mim". Mas, então, não guarda mais a função de sujeito psicológico. É, nele, o sujeito transcendental que faz função de sujeito e que permite ao sujeito psicológico não apenas conhecer o objeto ou seus próprios estados, mas ter, de algum modo, consciência de si mesmo. Assim se pode dizer que o sujeito transcendental, sem ter consciência de si, dá a consciência que tem de si ao sujeito psicológico. E o que há aqui de mais notável, e que mostra a indivisibilidade dos três aspectos do sujeito, é que o sujeito psicológico, tornando-se um objeto de conhecimento para o sujeito transcendental, tem consciência de si mesmo sem ter seu conhecimento. E tudo o que, no mundo, só tem sentido para ele e em relação a ele, nunca pode ser plenamente objetivado, como se vê para seus próprios estados, e para suas próprias percepções na medida em que envolvem sempre alguma ressonância qualitativa e emotiva. No mundo da experiência do sujeito psicológico, só há o sujeito transcendental que possa atingir a objetividade.
4. Encarnação
O sujeito transcendental só tem sentido para se encarnar no sujeito psicológico: e é de seu encontro que nasce a consciência.
O argumento precedente prova que é sempre de mais alto que mim que vem a própria luz que me esclarece. Só tenho consciência de mim mesmo porque o sujeito transcendental me permite me pôr enquanto sujeito psicológico, ou porque há em mim um sujeito em geral que me permite reconhecer o mim que sou. Mas este sujeito transcendental não tem porém ele mesmo nenhuma existência independente. No máximo pode-se dizer que é a possibilidade de todos os "mim" particulares e que é ele que lhes permite se determinar à existência. E é por isso que é na relação entre o mim transcendental e o mim particular que se exerce minha liberdade. Mas este mim possível só pode se conhecer no momento em que se atualiza, este mim livre, senão no momento em que se determina. O que mostra assaz claramente que só há consciência do mim transcendental em sua relação concreta com o mim psicológico do qual funda a existência remetendo-o sem cessar em questão. Da mesma forma, é o mim transcendental que permite ao mim psicológico pensar a ideia, além mesmo da percepção que tem do objeto sensível. E a consciência aqui aparece como uma superação e um envolvimento ao mesmo tempo do mim psicológico pelo mim transcendental, quando se se os tomasse isoladamente, o primeiro seria semelhante a um objeto sem pensamento, e o segundo a um pensamento sem objeto.
5. Mediação
O sujeito absoluto só pode ser denominado uma consciência na relação que sustenta por intermédio do sujeito transcendental com o sujeito psicológico.
Mas o sujeito transcendental é ele mesmo incapaz de se bastar; é um abstrato; é a possibilidade do sujeito psicológico à qual só o sujeito absoluto pode dar sua própria possibilidade. A ideia de uma perspectiva sobre o real que é a de todos e que não é a de ninguém só se justifica, como se viu no livro I prop. LV, pelo sujeito absoluto estranho a todas as perspectivas e que as contém todas. Há aqui uma relação que tem um caráter de necessidade na dialética ascendente, mesmo se estamos fora de estado de justificá-la por uma dialética descendente. Mas deste sujeito absoluto do qual parece que acabamos de pô-lo hipoteticamente, pode-se dizer que possui ele mesmo a consciência? Assim, como os psicólogos pensam que a consciência é uma relação que prova nossa adaptação imperfeita ao real, que é o sinal de nossa insuficiência e que não teria sentido no absoluto, os teólogos pensam que a palavra consciência não convém a Deus, embora dê a toda consciência a própria luz que a esclarece. Contudo observa-se, de uma parte, que neste ser inadaptado, a consciência é um progresso, um retorno à fonte de todas as adaptações, ela é superior à mais perfeita dentre elas porque nunca se resolve numa ordem que sofre, mas remonta sempre até uma ordem que cria; e de outra parte, a luz divina passa sem dúvida a consciência, porque é sua perfeição e princípio e não sua pura negação. Desde então, parece que a consciência nasce no momento em que o sujeito transcendental se volta para sua própria origem, isto é, para o sujeito absoluto, a fim de atualizar sua própria possibilidade que não consegue ele mesmo fundar no interior do sujeito psicológico. A consciência, então, viria do sujeito absoluto, mas só se produziria no momento em que, por um ato livre cumprido no patamar do mim transcendental, o sujeito psicológico entraria ele mesmo em jogo. Assim a luz não é ela mesma esclarecida, embora seja ela que esclarece todas as coisas. E compreende-se como se pôde dizer que, no homem, a consciência é sempre uma saída de si que o põe em relação com Deus, e em Deus, uma saída de si que o põe em relação com as criaturas.
6. Persistência
Na relação interna dos elementos do sujeito, a relação do sujeito com o objeto persiste sempre.
Poder-se-ia pensar que nesta relação dos elementos do sujeito uns com os outros, cada um destes elementos pode ser tomado alternadamente como objeto para os dois outros, de tal sorte que toda relação com o objeto propriamente dito se desvanece. Explicar-se-ia assim a perfeita interioridade ou a perfeita suficiência da consciência para si mesma. Todavia, o sujeito, em cada um dos papéis que lhe é atribuído, guarda sua relação com um objeto privilegiado, sem o que perderia sua natureza própria de sujeito e não poderia definir a função que lhe é própria por oposição às duas outras. O sujeito psicológico não tem por objeto o sujeito transcendental, mas, fora de nós, a coisa sensível, e em nós, o estado de alma sem o que não seria de modo algum um sujeito psicológico. O sujeito transcendental não desempenha seu papel de mediador tomando por objeto o sujeito psicológico no qual se atualiza, nem o sujeito absoluto que forneceria o termo de sua aspiração. O sujeito transcendental tem um objeto que lhe é próprio, a saber a ideia, sem a qual não poderia realizar o acordo entre os sujeitos psicológicos numa experiência que seria a mesma para todos, e seria incapaz por conseguinte de preencher sua função de sujeito transcendental. O sujeito absoluto enfim não tem por objeto o sujeito transcendental, nem o sujeito psicológico, o que supõe que poderiam ser num certo sentido independentes dele; mas não tem, propriamente falando, objeto; supera toda exterioridade: compreende e sustenta o sujeito transcendental e o sujeito psicológico, que só vivem da própria atividade que lhes empresta, embora, para adquirir uma vida própria, possam se separar dele, que nunca se separa deles.
7. Distinção
A relação entre o mim psicológico, o mim transcendental e o mim absoluto é uma distinção puramente espiritual que não comporta entre eles nenhuma separação real comparável àquela que o tempo e o espaço introduzem entre os objetos ou entre os eventos.
Só se pode conceber termos distintos pelo meio do espaço e do tempo que instituem uma distância entre os objetos e os eventos. Toda distinção deste tipo só tem sentido, por conseguinte, no mundo da experiência fenomenal. Mas quando considero a vida do sujeito, pode-se dizer que é transfenomenal e por conseguinte independente do espaço e do tempo, que são os meios pelos quais o sujeito se dá a si mesmo objetos (ainda seria preciso distinguir do mundo dos objetos o mundo das ideias, onde a implicação e a exclusão obedecem a outras leis que a separação e a relação dos lugares ou dos instantes, tais como se realizam pelo intervalo espacial ou temporal e pelo movimento ou a memória que os atravessam). Assim o sujeito absoluto nunca pode ser realmente distinto do sujeito psicológico nem do sujeito transcendental, embora possa haver entre eles uma espécie de véu, mas este próprio véu não pode fazer que, sem seu conhecimento, o sujeito psicológico não sofra a ação do sujeito transcendental, nem que o sujeito transcendental não receba do sujeito absoluto toda a atividade de que dispõe. Daí duas consequências:
— a primeira, é que existe um mundo espiritual formado pela própria totalidade da vida do sujeito que guarda um caráter de unidade através da multiplicidade de seus modos, e do qual o mundo fenomenal é ao mesmo tempo o meio pelo qual se manifesta e a condição pela qual se realiza. Donde é preciso concluir que há apenas um sujeito absoluto, — e mesmo um sujeito transcendental; embora sejamos tentados a considerar este último como inseparável da multiplicidade dos sujeitos psicológicos nos quais se encarna, porém expressa a mesma relação entre o sujeito absoluto e cada sujeito psicológico: é preciso que seja um para uni-los e servir-lhes de testemunha. Não há uma pluralidade de razões idênticas em cada consciência; mas todas as consciências invocam a mesma razão, no sentido mais rigoroso da própria palavra. E é por isso que nenhuma delas lhe é plenamente adequada.
— a segunda consequência é que o monadologismo não é inteiramente verdadeiro. Pois é preciso concluir de outra parte que os sujeitos psicológicos tampouco são absolutamente separados e independentes uns dos outros. São interiores a si mesmos enquanto precisamente se ligam ao sujeito absoluto pelo intermédio do sujeito transcendental; então se os vê descobrir a liberdade que é seu próprio começo absoluto, porque é uma participação neste começo absoluto que é o ato próprio do sujeito absoluto. Mas esta interioridade no mais profundo de si mesma os une a todas as outras mônadas ao invés de separá-los delas: e só se separam quando, precisamente reduzidas a seu estado de sujeito psicológico, não conhecem nada mais que sua própria limitação, e a própria servidão onde o corpo as reduz.
8. Intervalo
O mundo real preenche o intervalo que separa umas das outras as diferentes modalidades do sujeito.
Até aqui não saímos do mundo da subjetividade. Não conhecemos nada mais que a distinção entre as diferentes modalidades do sujeito, e entre os sujeitos particulares que somos bem obrigados a distinguir uns dos outros, sem o que a subjetividade absoluta, e mesmo a subjetividade transcendental, não se distinguiriam da subjetividade psicológica. Mas a distinção entre os diferentes modos da subjetividade só pode ser posta por um desvio que deve ser preenchido. Só pode sê-lo pela objetividade: a objetividade do mundo das ideias servirá para preencher o intervalo entre a subjetividade absoluta e a subjetividade transcendental, e o mundo sensível preencherá o intervalo entre a subjetividade transcendental e a subjetividade psicológica. Tal é a razão também pela qual: 1° as diferentes consciências são separadas umas das outras e porém unidas, e 2° há no todo do sujeito uma correspondência regrada entre a ideia e o sensível.
Pode-se perguntar por que é necessário que haja assim uma realidade que preencha o duplo intervalo que separa um do outro os diferentes planos do sujeito. Mas diremos que o sujeito transcendental, sendo incapaz de coincidir com o sujeito absoluto pois introduz no mundo a ideia de uma perspectiva em geral, deve envolver nesta perspectiva, sob a forma de uma realidade dada, o que lhe falta para igualar o sujeito absoluto, mas que deve porém formar um mundo válido para todas as perspectivas particulares: tal é precisamente o papel do mundo das ideias. E da mesma forma, o sujeito psicológico limita ele também o sujeito transcendental, não retendo senão uma só das perspectivas particulares para as quais legisla o sujeito em geral. Para não se confundir com ele, é preciso que dele seja separado por um objeto dado que só tem existência para ele só e no qual porém sofrerá uma ação que não produziu: tal é precisamente o papel do objeto sensível. Vê-se agora a origem das discussões que tiveram lugar, e que estão no fundo da querela dos nominalistas e dos realistas, sobre a riqueza relativa do sensível e da ideia. Se a ideia é apenas o abstrato do sensível, é o sensível que é o mais rico e, neste sentido, pode-se dizer que não existe nada mais que o indivíduo, mas então valeria mais dizer o conceito que a ideia. Inversamente se se considera a ideia em sua relação com o absoluto e o sensível como sua limitação, é a ideia que leva vantagem não apenas por sua riqueza, mas também por sua fecundidade, pois é ela que dá ao sensível a significação e a vida.
9. Gradação
Na escala do sujeito transcendental, podemos distinguir entre a categoria, o conceito e a ideia.
É o mundo das ideias que preenche a distância entre o sujeito transcendental e o sujeito absoluto, e que os impede de se confundir. Tal é a razão pela qual o mundo das ideias foi considerado por Platão como superior ao mundo sensível e como uma sucessão de graus nos permitindo aceder à ideia suprema que é a ideia do Bem. Todavia, sobre este ponto, a concepção platônica merece ser completada. Pois se é verdade que o sujeito só assume a função transcendental e só encontra a ideia quando partindo do mundo sensível, se eleva até este mundo superior onde descobre seu modelo eterno, ainda é verdade que estas ideias não devem ser consideradas como coisas mais perfeitas. Só preenchem seu papel no platonismo contanto que exprimam a própria atividade do sujeito absoluto enquanto desce até o sensível para lhe propor um ideal e para animá-lo. Se se quisesse que a ideia não fosse nada mais que um esquema abstrato tirado do sensível, então seria preciso lhe dar o nome de conceito. E reservar-se-ia o nome de categoria à atividade própria ao sujeito transcendental, no momento em que põe as condições gerais sem as quais o sensível não poderia ser pensado.
10. Valor
O sujeito transcendental, quando se volta para o sujeito absoluto e não mais para o sujeito psicológico, faz aparecer o valor.
Podemos dizer da ideia que exprime a atividade do sujeito absoluto enquanto é suscetível de ser participada: ela o é pelo sujeito transcendental e desce até o mundo sensível do qual se torna por assim dizer a razão. Mas permanecemos ainda aqui no plano da inteligência, isto é, da possibilidade. O sujeito psicológico pode participar do absoluto pelo meio da ideia, a ideia então é apenas uma mediação para o absoluto. Mas desde que é querida, então é um ideal, é uma participação realizada e não mais uma participação pensada, é objeto de amor: merece então o nome de valor. Há, portanto, ambiguidade no termo que a designa, pois segundo seja orientada para o mundo sensível, que explica, ou para o absoluto, do qual nos abre o acesso, ela merece o nome de ideia ou o nome de valor. E sem dúvida duas atitudes são possíveis, segundo o sujeito olha a própria ideia como um objeto inteligível ao qual se aplica, ou que ao contrário, considera a ideia como vindo de mais alto que ele, e como representando o próprio princípio que o anima.
De outra parte, pode-se distinguir entre as ideias, como se vê bem no platonismo, pois as ideias teóricas parecem ser os modelos das coisas, e as ideias práticas os modelos de nossa ação. Mas a arte fornece entre estas duas espécies de modelos uma transição. E pode-se perguntar se a ideia não é, em cada coisa, a atividade secreta que a modela, como é, a respeito da própria ação, uma essência que busca atingir, e que descobre o olhar da contemplação quando é bastante puro.
11. Participação
O sujeito psicológico se constitui como uma participação no sujeito absoluto pelo intermédio do sujeito transcendental.
Poder-se-ia pensar que o sujeito psicológico e o sujeito absoluto têm apenas um caráter concreto e real, e desde então parece que a vida da consciência se apresenta como uma participação imediata de um no outro. Por que então não abandonar o sujeito transcendental, como fazem tão voluntariamente os psicólogos ou os místicos? Mas ele desempenha um papel de mediador que não podemos negligenciar. Pois não há sujeito particular sem que haja também uma pluralidade e mesmo uma infinidade. Mas então o ser particular em geral se torna a possibilidade de tal ser particular. E esta possibilidade é uma possibilidade real da qual se pode dizer primeiro que, por sua própria indeterminação, põe à disposição do sujeito particular a infinidade dos possíveis que são uma expressão dividida da perfeição do sujeito absoluto; que é por conseguinte na relação do sujeito transcendental ao sujeito psicológico que se realizará esta escolha dos possíveis que é a marca do exercício da liberdade; que é enfim elevando-se até o sujeito transcendental que o sujeito psicológico, indo além de seus limites, praticará o verdadeiro desinteresse, que exprime, em suas relações com os outros sujeitos particulares, o testemunho de suas relações comuns com o absoluto.
12. Ato
O sujeito enquanto sujeito só pode ser definido como um ato e mesmo como um ato sem passividade.
A noção de sujeito evoca a de uma substância destinada a suportar acidentes ou qualidades. Mas de fato, tomamos aqui a palavra noutro sentido: trata-se do centro ao qual podemos relacionar todos os sujeitos possíveis de nosso pensamento. Isso só é possível com uma condição, é que este centro nunca se torne ele mesmo um objeto, mesmo para um outro sujeito, o que aboliria imediatamente nele sua natureza própria de sujeito. É aí o que explica por que é falso, como se pretendeu, que haja uma redução transcendental permitindo fazer do sujeito um objeto para o mim transcendental, o que nos obriga a considerar o sujeito transcendental como sendo a própria subjetividade do sujeito psicológico. Mas tem-se frequentemente uma tendência a considerar este sujeito como um centro objetivo de referência, sob pretexto de que há também no mundo outros centros que aquele que ocupo: mas isto não tem verdadeiramente nenhum sentido. Desde então um sujeito que não é nem objeto nem dado, mas para o qual há objetos e dados, é o que lhes assegura a possibilidade, o que faz que há termos que, não apenas têm relação com ele, mas podem lhe ser apresentados ou oferecidos. É aí o que se chama propriamente um ato, e, se se reflete sobre isso, vê-se que só há um ato que possa ter esta subjetividade ou esta interioridade pela qual não é preciso dizer que as coisas estão em nós, mas apenas que têm relação conosco. Este ato será um ato sem passividade, toda passividade sendo o que lhe é exterior, que o limita, e com o que tem relação, isto é, seu correlativo sem o qual não pode ser posto, mas estranho ele mesmo à operação que o põe.
13. Correlação
As duas noções de atividade e de passividade são sempre correlativas.
A noção de atividade não pode ser destacada da de passividade com a qual forma par, mas a passividade como tal não pertence ao sujeito, mas ao objeto. Assim, no sujeito psicológico, há o objeto da percepção ou o estado de alma, dos quais se pode bem dizer que os sofremos; mas o sujeito reside inteiro no ato pelo qual se os relaciona a si mesmo enquanto não os cria, mas é interessado ou afetado por eles. Da mesma forma, o sujeito transcendental só pensa a ideia no próprio ato pelo qual a abraça, embora tal ideia se distinga necessariamente de tal outra por seu conteúdo que é obrigado a aceitar, mesmo se se supõe que é ele mesmo que a definiu. Enfim, pode-se bem dizer do sujeito absoluto que supera a oposição da atividade e da passividade; mas, dizendo que é ato puro, diz-se ao mesmo tempo que tem por correlativo toda a passividade que se encontra em todas as perspectivas sobre o mundo que supera e que torna possíveis.
14. Unidade
A atividade própria do sujeito não se reparte entre os diferentes aspectos do sujeito, deve ser apreendida nesta unidade atual que determina a cada instante a orientação de cada um de seus movimentos.
É apenas por abstração que distinguimos uma atividade própria a cada uma das três espécies de sujeito que definimos. Pois só há uma atividade como só há um sujeito. E devemos tentar apreendê-la a cada instante no próprio ponto onde se aplica e que faz que pode se voltar para sua forma psicológica para se individualizar, para sua forma transcendental para constituir o conhecimento, ou para sua forma absoluta para remontar até sua fonte. Encontra-se, portanto, aqui este duplo caminho de descida e de subida que caracteriza todos os movimentos da consciência. Mas estes diferentes movimentos interiores à consciência são sempre acompanhados dos movimentos pelos quais se volta para algum objeto que lhe é exterior, para uma coisa, para uma ideia, para o valor ou para uma outra consciência.
15. Reflexão
A atividade reflexiva é idêntica à atividade criadora, mas de sentido oposto.
O que entendemos por atividade criadora é esta atividade absoluta cujo efeito não se distingue de seu puro exercício e da qual se pode dizer que cria tudo o que é, sendo esta criação nada mais que ela mesma enquanto se deixa participar por liberdades particulares às quais o mundo fornece ao mesmo tempo limites que as separam e meios que lhes permitem comunicar. A atividade que chamamos reflexiva supõe, portanto, a atividade absoluta ou criadora, mas não lhe é heterogênea: como esta se engaja no tempo, desde que é participada e se exprime pelo impulso que nos porta do passado para o futuro, a atividade reflexiva lhe muda o sentido, lhe remonta o curso, opondo sem cessar ao real o possível, e buscando no possível a razão de ser do real, seja para explicá-lo, seja para produzi-lo.
16. Junção
A atividade e a passividade se encontram na base da consciência assim como no cume.
O sujeito individual enquanto adere ainda à natureza deve ser definido como uma espontaneidade que é ela mesma uma atividade, mas uma atividade que sofremos, de tal sorte que nele a atividade e a passividade não se distinguem. E é o mesmo no exercício mais perfeito de nossa liberdade, que é ela mesma uma atividade da qual dispomos, cuja iniciativa nos pertence, embora a potência que possui seja uma potência ela mesma recebida. (Somente é preciso dizer que no primeiro caso nossa atividade vem por assim dizer se resolver em nossa passividade, quando é o inverso no segundo caso.) De tal sorte que a distinção entre a atividade e a passividade só se produz no entre-dois, isto é, na relação entre o sujeito transcendental e o sujeito individual, ali onde precisamente minha liberdade encontra na própria natureza uma resistência que tenta vencer, e produz ela mesma na sensibilidade efeitos aos quais doravante permaneço sujeito.
17. Liberdade
A distinção entre os três aspectos do mim permite compreender o exercício da liberdade: ela é colocada no andar do mim transcendental e olha ora para o mim psíquico e ora para o mim absoluto.
A liberdade só pode existir onde há uma alternativa. E mesmo, é a alternativa que a define, mais que a infinidade dos fins entre os quais poderia escolher. Esta alternativa só tem sentido contanto que nos obrigue sempre a escolher entre o baixo e o alto. É por isso que tem sede no nível do mim transcendental, que olha ora para o sujeito absoluto e ora para o sujeito empírico. Não que possa jamais renegar seja um seja outro: mas ora é olhando para o mim absoluto que constitui o mim empírico, então eleva o mundo ao nível do absoluto; ora é olhando para o mim empírico que pensa atingir o mim absoluto, então abaixa o absoluto ao nível do mundo. Além disso, o mim transcendental só existe como centro de possibilidades, seja que as pense, seja que as realize, o que é a própria função da liberdade.
18. Possibilitação
A reflexão é a possibilitação do real, mas esta possibilitação encerra todo o real numa potência pura que, atualizando-se, pode revestir duas formas diferentes, ideal e objetiva, das quais se pode então explicar o acordo e que correspondem às duas funções fundamentais da consciência: o entendimento e o querer.
A reflexão, que põe em questão todo o real, o converte inteiro em possível, a fim de que o sujeito tenha domínio sobre ele atualizando-o. Somente se considera frequentemente esta conversão como resultando imediatamente na transformação da coisa em ideia. Isto não é inteiramente verdade. Pois a reflexão ainda é apenas a potência que porta nela todos os possíveis, que exprime por assim dizer sua possibilidade. Ela é a possibilidade de todos os possíveis. Mas ainda é preciso que estes próprios possíveis sejam atualizados como possíveis, eles o são sob a forma da ideia. E é a função do entendimento. Mas podemos atualizar a própria ideia dando-lhe uma forma objetiva; e é a função do querer. O acordo da ideia e do objeto, que são os dois aspectos do real, é sempre precário para o conhecimento; só a ação é capaz de verificá-lo realizando-o: o que, até na teoria do conhecimento, justifica o valor da experimentação.
19. Possível
O possível resulta de uma análise do ser e se opõe à potência como o entendimento ao querer.
Opõe-se o possível ao real ou à existência. Mas não se pode opô-lo ao ser. Pois não é nada: exprime mesmo uma certa interioridade do ser, pela qual precisamente faz contraste com a realidade ou com a existência, que o supõem, embora possa ele mesmo delas ser separado. Os possíveis exprimem sempre uma certa análise da totalidade do ser que, dando-me sua disposição, me permite atualizá-los e fundar minha própria existência sobre a participação. Mas considera-se sempre o possível como um objeto e, de uma maneira privilegiada, como o objeto do entendimento, embora este objeto só exista pela própria operação do entendimento. Todavia, na medida em que o possível pode ser atualizado, representa uma potência da vontade e que sustenta a respeito do possível a mesma relação que a própria vontade a respeito do entendimento.
20. Presença
O ato do espírito se opõe à ação porque ao invés de produzir um efeito material produz apenas a pura presença de seu objeto.
É difícil, parece, definir o ato senão em relação ao seu efeito. Mas é então confundi-lo com a ação, que interessa o corpo tanto quanto o espírito e estabelece uma relação entre os movimentos de que o corpo dispõe e aqueles que impõe a outros corpos. Contudo era natural, quando se considera o ato em sua pureza, independentemente do corpo, atribuir-lhe ainda como função pôr seu objeto, no sentido em que pô-lo é construí-lo e mesmo criá-lo. Estas palavras traduzem assaz bem as diferentes formas do idealismo. Mas o ato é puramente interior a si mesmo, não é criador de nada senão de si: no que reside sua própria espiritualidade. Fora dele, não há nada mais que o mundo dos objetos. Dizendo que lhes aplica sua intenção, os filósofos modernos querem dizer que os atualiza, isto é, que se os torna presentes. O ato espiritual não imita a ação material; não se desdobra na exterioridade, e, dando às coisas a presença, não rompe sua própria interioridade.
21. Fundamento
O mim é colocado num ponto que está acima da distinção do espectador e do agente, mas que a funda, sobre os três planos de sua atividade.
O mim reside numa atividade, mas que não é uma atividade absoluta, e que se cinde necessariamente numa atividade criadora, na qual se produz a si mesmo marcando o mundo com sua pegada, e uma atividade puramente representativa, que lhe permite abraçar no mundo tudo o que o supera: só por aí consegue permanecer solidário da totalidade do mundo, isto é, ao mesmo tempo, destacar-se dele e inscrever-se nele. Ora esta atividade e esta passividade se reencontrarão no nível do mim individual sob a forma de uma oposição entre a sensação e o desejo, no nível do mim transcendental sob a forma de uma oposição entre o entendimento e o querer, e no mim absoluto no interior desta unidade que só pode ser oferecida em participação contanto que se cinda ela mesma para alimentar ao mesmo tempo nossa contemplação e nossa ação.
22. Interioridade
A consciência não exclui a relação de interioridade e de exterioridade, como se acredita algumas vezes, sob pretexto de que só vale para o espaço: como em todos os casais de contrários, a interioridade tem um privilégio sobre a exterioridade e a absorve no limite.
Elevou-se cf. liv. I, Prop. LXXVI contra a ideia de um mundo da consciência qualificado de interior e de um mundo físico que lhe seria exterior. E alega-se que esta representação só vale no espaço. Ora a consciência não está no espaço: não tem, portanto, interioridade. E nada, por conseguinte, lhe é exterior no sentido estrito deste termo. Mas a oposição da interioridade e da exterioridade apresenta aqui um sentido um pouco diferente: a interioridade é, não um objeto situado no interior de um recinto, mas o que só tem sentido em si e para si, ao invés de que a exterioridade é o que só tem sentido para um outro, a saber para um sujeito sem o qual isso mesmo não seria nada. Ora a exterioridade e a interioridade são recíprocas, ao menos quando se tem que ver com um sujeito finito. Mas a interioridade possui um privilégio em relação à exterioridade, porque é ela que é positiva, ao invés de que a exterioridade só lhe traduz a limitação. De tal sorte que a exterioridade desapareceria e seria absorvida pela interioridade, se esta fosse levada até o último ponto. Mas inversamente poder-se-ia dizer, se se entende por interioridade não um ato mas um conteúdo, que o sujeito não tem dentro, mas que tem apenas um fora com o qual não cessa de estar em relação (sendo esta relação seu único dentro).
23. Representação
Pode-se dizer que o sujeito cria a representação do mundo ao mesmo tempo pelo que é e pelo que não é; o que explica a parte de atividade e a parte de passividade que aparece em sua obra.
Acreditou-se dever explicar quase sempre a representação que temos do mundo pela oposição de uma matéria e de uma forma, mas sem que se possa dar conta nem da existência desta matéria, que permanece um dado ininteligível, nem da conveniência da forma, onde o espírito reconhece suas próprias operações, com uma matéria que lhe é heterogênea. Mas se se aceita que a atividade do sujeito seja uma atividade participada, ela é inseparável da atividade da qual participa. O que quer dizer que, na participação, a unidade do mundo nunca pode ser rompida. Ora isto só é realizável com uma condição, a saber que a atividade exercida pelo sujeito seja sempre correlativa de uma passividade que a supera e que lhe responde, ou que toda operação que cumpre seja correlativa de um certo dado. A representação do mundo exprime ao mesmo tempo no sujeito o que é e o que não é, o que pode e o que não pode, mas contanto que o que não é ou o que não pode permaneça sempre em relação com o que é e com o que pode. Tal é, com efeito, o sentido da distinção e da correspondência que não cessam de se estabelecer no conhecimento entre sua matéria e sua forma.
24. Expressão
A liberdade exprime o ato de participação do sujeito psicológico no sujeito absoluto pelo intermédio do sujeito transcendental.
A liberdade é uma atividade da qual disponho, um poder que recebi, mas que só posso exercer contanto que me aposse dele. Nunca pertence senão a um sujeito particular. Mas é neste sujeito particular o poder que tem de se criar, isto é, de se superar, de ir sem cessar além do que é. É por isso que é obrigada a alargar este sujeito particular até as dimensões do sujeito em geral no qual há a possibilidade de uma multiplicidade de sujeitos diferentes, de uma alteração e de um enriquecimento de minha natureza psicológica. Isto é dizer que o sujeito em geral cria uma espécie de mediação graças à qual o sujeito psicológico, ao invés de permanecer encerrado no interior de seus próprios limites, cessa de ser seu prisioneiro e vai sem cessar além. A liberdade, enxertada sobre a natureza, é a potência pela qual minha natureza é negada e sempre transcendida.
25. Antinomia
A liberdade é uma e múltipla: ela é o ponto onde, para se exercer, cria a antinomia do um e do múltiplo e a resolve.
A liberdade só pode ser definida como o poder uno de escolher entre possíveis diferentes. Dizer que é um poder é distingui-la da atividade da qual participa e que, como Descartes havia marcado com muita força, nunca pode ser definida por sua potencialidade, o que é o próprio sinal da impotência e da insuficiência. No absoluto, a potência se converte imediatamente em ato: não se distingue dele. A potência, ao contrário, aparece como sendo a própria lei de toda participação. E o que é deixado ao ser particular é precisamente a iniciativa de converter esta potência em ato. Mas esta potência é idealmente a potência do todo, embora seja necessariamente limitada nas próprias condições de seu exercício, tais como são determinadas pela situação na qual está engajada e pelo tempo onde é obrigada a agir. De tal sorte que a própria unidade desta potência é correlativa de uma multiplicidade objetiva, que solicita nela pensamentos diferentes e lhe propõe uma multiplicidade de possíveis, entre os quais será preciso que escolha. Nesta escolha, a unidade não conseguirá se romper, pois exprime uma hierarquia de possíveis e que aqueles que exclui ainda o são por seu ato próprio. Esta escolha é, de algum modo, a única maneira que a liberdade tem de criar, e, por conseguinte, de criar o próprio mim; a distinção aqui entre o criante e o criado não pode ser abolida como no ato puro: a relação dos dois termos é sempre remetida em questão. Mas a multiplicidade é aqui correlativa da atividade participada que, guardando sua unidade interior, se opõe a si mesma um mundo infinitamente variado que se torna a própria matéria de suas decisões. Estas afetam a forma ao mesmo tempo de uma opção e de uma síntese. A antinomia do um e do múltiplo é a condição da liberdade: mas é também sua obra; é ela que dá ao mesmo tempo o problema e a solução.