Participação
83. Recepção
A atividade reflexiva é uma atividade que é nossa e que porém recebemos.
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Não há atividade que nos pertença mais estreitamente que a atividade reflexiva; ela é propriamente nossa, pois é o próprio sujeito enquanto se constitui por um movimento que depende apenas dele. Ela é a liberdade que se destaca do dado e que se interroga sobre o emprego que deve fazer de si mesma. Mas porém esta própria atividade é um poder que recebemos e do qual apenas o uso nos é deixado. É nela que descobrimos este caráter de possibilidade sob o qual o sujeito apreende sua própria realidade, e através do qual constitui seu ser próprio e sua representação do próprio ser das coisas.
84. Libertação
A reflexão nos liberta do tempo: ela é, no tempo, no ponto de encontro do ir e do retorno e geradora do próprio tempo.
Que a reflexão esteja fora do tempo, não enquanto ato da vida psicológica, mas por sua significação e seu alcance, isto já aparece se se dá conta de que é uma interrupção da vida temporal e que a põe em questão a fim precisamente de examiná-la, e, se há lugar, reformá-la. Assim, os movimentos da reflexão têm belo estar engajados no tempo, a reflexão nos transporta num mundo que é independente do tempo ou que pode tomar o próprio tempo por objeto. Pode-se mostrá-lo de outro modo, dizendo que a reflexão supõe sempre uma regressão no tempo, mas que antecipa uma progressão que a recobre, de tal sorte que percorre a ordem do tempo nos dois sentidos e que consiste justamente na superposição deste ir e deste retorno. Assim ela abole o tempo, mas o engendra também, se é verdade que só há tempo para aquele que lhe remonta ou que lhe desce o curso, e que se dá conta, precisamente, que este tempo tem duas vertentes das quais a reflexão ocupa o cume.
85. Posse
A consciência não é consciência de nada: em sua essência própria de consciência, ela é a tomada de posse do próprio ato que a faz ser, da mesma forma que enquanto conhecimento, ela é a tomada de posse de um objeto.
Não há dificuldade em reconhecer que o conhecimento é sempre o conhecimento de um objeto. Ora, é a consciência que produz o conhecimento, de tal sorte que seria contraditório imaginar que pudesse haver um conhecimento da consciência: seria fazer dela um objeto. Daí, esta consequência que se faz frequentemente da consciência um ser misterioso, que engendra uma luz que é ela mesma incapaz de receber. Mas isto não é inteiramente verdade. É esta atividade, pela qual a consciência se cria a si mesma, que a consciência esclarece em seu exercício puro, sem porém fazer dela um objeto que seria distinto dela e ao qual poderia se aplicar. (A diferença entre o conhecimento de um objeto e a consciência de nossa atividade pode se exprimir pela fórmula seguinte: que o objeto se revela a nós por sua opacidade e a atividade por sua transparência à luz.) Ora as teorias da consciência a reduzem ora a uma atividade que produz quase a seu despropósito todos os objetos do conhecimento, ora ao conhecimento que temos destes objetos, sem nos interrogarmos sobre a atividade que os apreende. No primeiro caso, temos que ver com um idealismo transcendental, no segundo com um idealismo empírico. Mas é preciso uni-los, estabelecendo entre a atividade constitutiva da consciência e a consciência que esclarece esta atividade uma espécie de círculo tal que a atividade não seja nada senão pela própria consciência que põe em obra, e que a consciência não seja nada senão pela revelação da atividade que a faz ser. E se a consciência é sempre inseparável do conhecimento de algum objeto, ela permanece presente neste próprio conhecimento com os caracteres que acabamos de lhe atribuir, e que o próprio da reflexão é precisamente descobrir.
86. Absoluto encontrado
A regressão reflexiva vai de direito ao infinito, mas é que desde seu primeiro movimento já nos dá o absoluto que busca.
É claro que a regressão reflexiva pode se prosseguir indefinidamente e que, quando pusemos o pensamento, podemos também pôr o pensamento do pensamento, o que poderia assim nos induzir a acreditar que entramos num processo onde nunca atingiremos o primeiro termo que buscamos. É que este primeiro termo, já o temos desde que pomos o pensamento do pensamento, isto é, o pensamento enquanto é consciente de si mesmo. Nunca remontamos além. O pensamento do pensamento é homogêneo ao próprio pensamento, assim como todos os pensamentos sucessivos que se poderiam obter por algum novo redobramento. Se a condição do pensamento é ela mesma um pensamento, a descoberta do pensamento nos descobre ao mesmo tempo sua própria gênese.
87. Artifício
Só é por um artifício verbal que é possível empregar a expressão "pensamento do pensamento" e se engajar em seguida numa regressão ao infinito: pois o pensamento não pode se tornar um objeto para si mesmo.
Em realidade, quando empregamos esta expressão "pensamento do pensamento", convertemos o pensamento em objeto, e imaginamos que pode se conhecer a si mesmo à maneira como conhece um objeto diferente dele. Então, do pensamento que o pensa, pode-se dizer que pode ser objeto de um novo pensamento, etc. Mas não é aí senão um artifício. Pois converter em objeto o pensamento é coisificá-lo, é arruiná-lo como pensamento. Se por conseguinte é preciso, sob pena de se aniquilar, que no momento em que parece se redobrar para se apreender, o pensamento subsista ainda como ato tanto no aspecto pelo qual é conhecedor quanto no aspecto pelo qual é conhecido, é apenas o sinal de que este ato é para si mesmo sua própria luz. Então se revela a nós o caráter mais original da consciência, que é de ser uma operação pela qual o eu se cria a si mesmo, sem que seja possível distinguir aqui entre a causa e o efeito, entre a apreensão e o que apreende. No conhecimento, a dualidade do objeto e do sujeito é a própria condição de sua unidade, na consciência, é a unidade que se redobra sem jamais se mudar em dualidade. Tal é o verdadeiro sentido do verbo reflexivo que só pode exprimir o ato primitivo do pensamento e que só permite a este ato ser um ato de pensamento. Pois, de outro modo, este ato seria um ato sem consciência, e como a consciência nasceria da presença do objeto do qual só posso ter conhecimento porque o próprio ato que o produz porta em si esta consciência que é sempre consciência de si, e sem a qual o próprio conhecimento permaneceria estranho à consciência? É preciso, portanto, manter uma identidade absoluta entre o pensamento que se pensa e o pensamento que pensa. Um pensamento que não se pensasse não seria um pensamento: mas não se pensa como objeto, embora pense sempre um objeto. A expressão "pensamento do pensamento" prova que não se pode remontar além do pensamento, que é o primeiro começo de si mesmo, como é o primeiro começo de todas as coisas; o pensamento do pensamento, é menos ainda a consciência do pensamento que o pensamento considerado em seu ato gerador.
88. Primeiro termo
O próprio da regressão reflexiva é se deter no primeiro termo, ao invés de se engajar num processo ao infinito, pois este primeiro termo não é mais um termo particular, mas uma atividade suposta por todos, e que se reencontra semelhante a si mesma desde que se redobra.
É apenas em aparência que a regressão reflexiva se engaja num processo sem fim, para se tornar em seguida a reflexão da reflexão, etc. Pois não passamos de tal pensamento particular a um outro pensamento particular que seria o pensamento deste, mas de tal objeto de pensamento ao pensamento possível de tal objeto, que é ao mesmo tempo o pensamento possível de todos os objetos. Ele é, portanto, não apenas semelhante a si mesmo qualquer que seja o objeto ao qual se aplica, mas ainda a cada um dos degraus da regressão. O que significa claramente que desde este primeiro degrau, o que temos é este puro poder de pensar considerado em toda a sua generalidade, sem que haja lugar para nós remontarmos além.
89. Onipresença
A reflexão nos põe em presença de uma atividade onipresente mas que podemos sempre engajar de novo no tempo.
A reflexão não nos põe apenas em presença de uma atividade que permanece a mesma, qualquer que seja a operação que possa cumprir: é preciso dizer, com efeito, que o que a reflexão descobre é em realidade sua onipresença. Ela não é, portanto, regressiva senão em aparência. Está sempre à nossa disposição da mesma maneira e com a mesma potência sempre indeterminada. Cabe a nós nos apossarmos dela, a fim de pô-la em obra. Mas isto só é possível contanto que, cada vez, a inserimos no tempo por uma operação que é ela mesma um momento de nossa vida, e que pode sempre ser recomeçada. O que é uma espécie de prova que fazemos da ligação, em cada um dos movimentos de nossa consciência, do temporal e do eterno.
90. Criatividade
A reflexão não é apenas o ato pelo qual me destaco do mundo, mas é também o ato pelo qual reencontro uma atividade criadora da qual me faz participar.
Parece que a reflexão, pela qual se constitui um mundo intelectual independente do mundo dado, é ela mesma estéril e que supõe este mundo sem nele penetrar. Mas isto não é verdade. Pois a reflexão é ela mesma uma atividade real, faz parte do real, que não é o mesmo antes e depois que a reflexão se exerceu, mesmo se a reflexão não se muda numa decisão do querer. Esta atividade, pela qual a reflexão se constitui, é a mesma pela qual todas as coisas se fazem: empresta-lhe o próprio poder de que dispõe. Ela nos faz participar dela por um movimento que é nosso, que nos permite dar ao nosso ser subjetivo uma existência independente, e que, ao mesmo tempo, lhe permite permanecer homogêneo à totalidade do mundo criado, recriando-o por assim dizer em nós de uma maneira virtual.
91. Solidariedade
A reflexão me inscreve num todo da subjetividade, onde meu próprio eu é solidário de todos os outros eu, e reside com eles acima do mundo, embora encontre com eles sua expressão no mundo.
Não se saberia desconhecer que a reflexão nos transporta num mundo que não é o mundo que tenho sob os olhos, embora esteja em relação com ele. É um mundo subjetivo onde só encontro movimentos de pensamentos e ideias que lhes correspondem, e dos quais sei que constituem um domínio de possibilidades que supera infinitamente tudo o que poderei jamais atualizar. Assim este mundo subjetivo no qual a reflexão me faz penetrar, estende-se bem além da circunscrição de meu próprio eu. Descobrir um outro eu é descobrir que nele penetra comigo, e que é, por conseguinte, comum a todos os eu. Não é muito todos os eu reais e possíveis para tomar posse dele. E é por isso que desempenham, uns em relação aos outros, o papel de mediadores. Mas embora este mundo subjetivo esteja acima do mundo que temos sob os olhos e que eu suba sem cessar deste para aquele, aquele é necessário a este para lhe fornecer não apenas um ponto de apoio, mas ainda estes modos de expressão sem os quais a revelação que dele temos não poderia ser nem confirmada, nem comunicada.
92. Desapego puro
Na pureza do "eu" as representações se destacam do ato intelectual da mesma maneira que as tendências do ato voluntário.
O "eu" não deve ser confundido com o conjunto das representações: é o ato sem o qual não seriam, mas que delas se destaca, que delas se torna independente, que contém sua possibilidade e que exerce sobre elas um direito de jurisdição, à medida mesma que nossa consciência se torna mais pura e se redobra, por assim dizer, sobre a própria fonte de todos os seus pensamentos, sobre a atividade que os sustenta, que os domina e que os julga, mas que não se deixa absorver por nenhum deles. Da mesma maneira, quando consideramos nossa conduta, ela é determinada por nossas tendências, mas estas tendências são como a matéria de minha ação, mais que não são seu princípio. Quando as sofro ou que lhes cedo, é meu próprio eu que abdica. Desde que se afirma ao contrário, então minha vontade aparece, que se torna independente das tendências como o ato intelectual o era de suas representações, e que, como ele ainda, não pode se passar de suporte, mas nunca lhe permanece acorrentado.
93. Condições
Na dúvida, não abolo as coisas, não as ponho mesmo entre parênteses: é preciso que estejam ali para que eu possa remontar até suas condições de possibilidade.
Não se pode conceber o sujeito como separado de sua operação, nem esta operação como separada do objeto ao qual se aplica. Assim a reflexão, se se conquista a si mesma pela dúvida que incide sobre as coisas, não abole estas coisas, mesmo não as põe entre parênteses. Pois é preciso que estas coisas permaneçam ali para que eu possa me elevar até suas condições de possibilidade. E, nestas condições, o que descubro é com efeito a possibilidade de todas as coisas, isto é, estas operações que me pertence precisamente cumprir e que fazem a prova de sua validade em seu próprio encontro com as coisas. Estas operações já estavam implicadas na presença pela qual as coisas me eram dadas: o papel da reflexão é apenas me permitir tomar consciência delas.
94. Possibilidade
As condições de possibilidade supõem uma liberdade que as descobre e que as confronta com seu objeto; mas acontece que se realizam ora com o concurso, ora sem o concurso da vontade: neste segundo caso, se se pudesse enumerá-las todas, dariam ao objeto um caráter de necessidade.
Estas condições de possibilidade só têm sentido por uma liberdade que se exerce em dois tempos: primeiro em sua busca, no momento em que se separa do dado para descobri-las, em seguida em sua posta em obra, no momento em que retorna para o dado para pô-lo em relação com elas. Obtenho assim uma espécie de encontro entre o virtual e o atual, que dá ao real a inteligibilidade que lhe é própria. Aqui dois casos podem ser distinguidos: quando é o sujeito que opera a passagem da virtualidade à atualidade, age enquanto vontade; mas quando não se exerce senão como inteligência, isto é, quando não ultrapassa a possibilidade do objeto que se atualizou sem ele, então a enumeração de todas as suas condições de possibilidade, se tivesse lugar, transformaria a pura existência do objeto em necessidade.
95. Jogo criador
A reflexão crítica, voltando-se para si mesma, descobre a atividade criadora em seu próprio jogo.
Poder-se-ia pensar que a reflexão, supondo sempre uma dada à qual se aplica, é sempre uma reflexão essencialmente crítica que pede ao dado seus títulos, efetua nele uma operação de triagem e converte sempre o fato em direito. Mas há uma reflexão sobre a própria reflexão, ou uma crítica da crítica da qual se pode bem dizer que constitui uma espécie de círculo, mas a vantagem deste círculo é nos encerrar no interior da reflexão e para nos fazer descobrir nela, como condição ao mesmo tempo e como meio de liberação de sua atividade propriamente crítica, uma atividade propriamente criadora que não é nada mais que o próprio espírito em ação apreendido em sua própria eficácia, enquanto exprime não apenas a razão de ser, mas a produtividade da razão de ser.
96. Intermediário
O ato reflexivo é intermediário entre o objeto criado e o ato criador.
A consciência só pode ser definida como a consciência de um objeto. E se se quisesse fazer dela a consciência da consciência, seria preciso, ao menos em seu exercício inicial, que fosse já a consciência de um objeto, sem o que permaneceria uma pura virtualidade. Vê-se, portanto, que a consciência supõe a criação e que dela constitui uma espécie de redobramento subjetivo. Mas desde que a reflexão se produziu, ela isola, por assim dizer, este movimento representativo pelo qual parece que o objeto se torna a obra própria do pensamento. É aí uma participação da atividade criadora que, incapaz de se dar a realidade do mundo, torna-se-lhe presente pela representação, antes de modificá-la nos próprios limites que são atribuídos ao seu poder. Assim a reflexão é o caminho que nos permite ligar ao objeto criado o ato criador.
97. Falta
A existência do sensível ou da ideia é um efeito da participação e exprime ao mesmo tempo o que lhe falta e o que a preenche.
A própria participação é sempre um ato, mas um ato que só se acabava no sujeito absoluto, e não no sujeito transcendental nem no sujeito psicológico. Mas nem um nem outro destes dois sujeitos pode ser separado do sujeito absoluto, devem, portanto, ambos ser correlativos de um dado que exprime o que lhes falta para coincidir com o sujeito absoluto, mas ao mesmo tempo uma presença que o sujeito absoluto lhes traz e sem a qual permaneceriam um e outro como formas sem conteúdo. O sensível é o que falta ao sujeito psicológico para juntar-se a este sujeito transcendental, e a ideia, o que falta ao sujeito transcendental para juntar-se ao sujeito absoluto: o que basta para explicar o acordo entre o sensível e a ideia.
98. Existência
Apenas o sujeito individual e o sujeito absoluto têm uma existência verdadeira: mas o sujeito transcendental exprime a própria condição que torna este participante daquele.
O sujeito psicológico e o sujeito absoluto têm um e outro uma existência concreta; e o sujeito psicológico, que é incapaz de se bastar, tira sua existência do sujeito absoluto que é a existência perfeita (à maneira como o corpo na linguagem estática da representação é solidário do espaço e tira dele sua natureza própria de corpo: sua limitação e sua passividade supõem igualmente no corpo uma infinidade e uma atividade que os sustentam e que só têm sentido para elas). Mas o sujeito transcendental é o instrumento da participação; é por isso que é impossível lhe atribuir a si mesmo a existência verdadeira. Haure no sujeito absoluto esta eficácia pela qual se torna ele mesmo um sujeito, mas que não é ainda tal sujeito, isto é, cujos limites não estão ainda circunscritos, mas devem sê-lo, que possui uma potência que não se determinou ainda, mas que exige sê-lo.