Reflexão
1. Unidade
Há apenas uma filosofia, mas que tem aspectos diferentes.
Há apenas uma filosofia como há apenas um mundo. E como há diferentes perspectivas sobre o mesmo mundo, há também aspectos diferentes da filosofia, onde se expressa a personalidade de cada filósofo. Mas a filosofia busca compreendê-los e superá-los. Ela é ao mesmo tempo um conhecimento e uma sabedoria: um conhecimento do ser, sobre o qual se funda uma sabedoria da conduta. Ela busca dar a significação do universo tanto para a inteligência que o contempla quanto para a vontade que nele se exerce. Este empreendimento deve ser válido para todos os homens e não apenas para um só: pois todos os homens são como um mesmo homem cujos pensamentos se atualizam nas diferentes consciências, não apenas no abstrato e porque estão submetidos às mesmas leis, mas no fato porque estes mesmos pensamentos que ele tem se atualizam nas diferentes consciências onde se acordam e se combatem como na sua própria. De tal sorte que nenhuma filosofia pode valer para mim que não valha para todos: e se a aplicação que faço dela deve variar segundo minha situação original no mundo, é para confirmar minha verdade e não para contradizê-la.
2. Verdade
Há na filosofia uma exigência de verdade que não pode ser satisfeita senão por uma experiência intelectual.
Da mesma forma, a filosofia não pode se contentar em exprimir os votos da sensibilidade que são frequentemente confusos e incertos, que encerram uma espécie de hipoteca sobre o futuro, e arriscam nos decepcionar mesmo quando são satisfeitos. É preciso que ela me estabeleça na verdade de mim mesmo e do mundo, uma verdade que force meu assentimento e o assentimento de todos, que regule meus desejos ao invés de lhes responder. É preciso, portanto, que ela tenha um caráter de necessidade. Não que essa necessidade seja inevitavelmente a do raciocínio, embora o raciocínio a confirme e a explicite; é uma necessidade mais primordial e mais profunda, a de uma experiência sempre disponível e à qual é impossível escapar. Esta experiência não é imediata: ela sempre precisa ser reencontrada e aprofundada. Esta é a tarefa do filósofo, que a propõe sem cessar a outros, para que a obtenham por sua vez. Ninguém a possui que não possa perdê-la. Mas ela não pode ser comum a todos e se impor a cada um senão porque ela é uma experiência verdadeira. Ora, a experiência da verdade não pode ser senão uma experiência intelectual. Não há outra filosofia senão o intelectualismo.
3. Método
O método reside numa conduta da inteligência.
A filosofia reside, portanto, numa certa ação da inteligência. Não se tratará de buscar conhecer a inteligência, pois é a própria inteligência que deveria conhecê-la. Conhecer a inteligência é apenas exercê-la. Mas ela não se exerce sozinha. Ou ao menos, ela tende para um objeto do qual busca adquirir uma espécie de posse: mas ela lhe dá uma tal transparência que ele parece se resolver nela e que sua presença a todo o real torna-se, ao fim, sua própria presença a si mesma. Aqui é como a luz que começa por esclarecer a obscuridade do mundo e da qual hoje nos perguntamos se não é também sua substância. Daí vem que a filosofia nos parece sempre consistir numa direção da inteligência, isto é, num certo método, e que este próprio método parece se confundir com a doutrina, como mostra o exemplo de todas as grandes filosofias. A filosofia depende de uma operação da atenção constantemente renovada, que, contanto que se produza como é preciso, nos descobrirá o próprio ser que somos e sua inserção no todo do Ser, do qual é ao mesmo tempo separado e inseparável.
4. Subjetividade
O método filosófico busca na subjetividade a razão de ser da objetividade.
Mas como é preciso que eu exerça minha atenção? Que direção devo lhe dar? O mundo que tenho sob os olhos me revela bem a presença de um mundo cujos limites não conheço, no meio do qual está situado um corpo que chamo meu, que se distingue dele e permanece sempre em relação com ele. Assim que minha atenção se aplica a este mundo, ela constitui a ciência, que é a obra da inteligência. Mas o que busca a filosofia é precisamente a significação deste mundo que tenho sob os olhos, e do qual se pode dizer que o mistério cresce à medida que o conheço melhor. Este sentido é invisível; ele depende apenas de meu pensamento; ele não tem existência senão no interior de mim mesmo, num ato que depende de mim cumprir, e que guarda sempre um caráter de subjetividade irredutível. A subjetividade aqui não é a dos meus estados de alma que permanece sempre subordinada ao corpo; ela é a do próprio espírito enquanto é capaz de dar um sentido a todas as coisas, incluindo aos meus próprios estados de alma. A filosofia busca sempre na subjetividade a razão de ser da objetividade.
5. Reflexão
A reflexão é o movimento intelectual pelo qual o sujeito funda na experiência efetiva de si mesmo a possibilidade de toda experiência, externa ou interna.
Tínhamos que lidar há pouco com uma inteligência que buscava atingir um objeto, e mesmo fazer da totalidade do ser um objeto para ela. Agora ela deve se afastar do objeto tal como é dado numa experiência exterior, a fim de buscar uma experiência interior que possa fundar este objeto e lhe dar sua significação. Sobre o que incidirá esta experiência por sua vez? Incidirá sobre um objeto secreto e que teria existência apenas para nós? Mas é evidente que esta experiência não seria mais instrutiva que a precedente: ela seria incapaz de nos dar o sentido, isto é, de se justificar a si mesma, como de justificar a experiência que havíamos abandonado. Isso não pode ser senão a experiência da própria subjetividade, definida como a condição sem a qual não haveria para nós nenhuma experiência nem externa nem interna. Não é apenas o enunciado de uma condição formal e puramente lógica sem a qual nenhuma experiência me apareceria como possível, mas uma experiência real, que não é a de um objeto novo, mas aquela que o sujeito tem de si mesmo, isto é, de sua própria ação subjetiva, enquanto sustenta toda experiência que pode chamar sua. É este movimento pelo qual a inteligência, ao invés de olhar adiante para o objeto de sua experiência, olha para trás para o sujeito desta experiência, ao qual se dá o nome de reflexão.
6. Absoluto
É o sujeito absoluto que é a condição ao mesmo tempo do sujeito em geral, do sujeito individual e de seu acordo.
Este próprio sujeito não pode ser confundido com a inteligência, embora a inteligência seja sustentada por ele — de modo completamente diferente, é verdade, que esta experiência da qual ele era o centro. Pois esta inteligência, embora sempre exercida por mim, é em mim isso mesmo pelo qual me conheço, me situo e me supero. Assim ela não se contenta em descobrir o sujeito da experiência: ela lhe busca o sentido. Há nele muitos caracteres que lhe escapam e que ela busca aprofundar: este sujeito lhe revela sua limitação, enquanto não é ainda senão sujeito psicológico e centro de uma perspectiva que pertence apenas a ele. Um tal sujeito é apenas a determinação do sujeito em geral, posto nele sob uma forma concreta, mas que é a condição de possibilidade de toda experiência, e não apenas de tal experiência. Mas isso mesmo não pode nos bastar: pois a questão se coloca ainda de saber por que há assim sujeitos diferentes que possam se tornar o centro não apenas de uma perspectiva individual, mas mesmo de uma perspectiva qualquer. O que me conduz a pôr um sujeito absoluto que não é apenas a condição da existência do sujeito em geral, como o sujeito em geral era a condição do sujeito individual e como o sujeito individual era o sujeito de minha experiência concreta, objetiva e subjetiva, mas a condição ao mesmo tempo do sujeito em geral, do sujeito individual e de seu acordo.
7. Experiência
Há uma experiência do sujeito absoluto como há uma experiência do sujeito em geral e uma experiência do sujeito psicológico.
Não se deve dizer que um tal sujeito não é objeto de nenhuma experiência. Pois se pode dizer que a filosofia sempre sofreu da limitação do sentido da palavra experiência que se quis aplicar apenas ao conhecimento pelos sentidos do objeto material, ou a rigor de nossos estados de alma. Mas há uma experiência do sujeito psicológico sem a qual eu não poderia dizer eu, nem mesmo dizer meu corpo, pois meu corpo não se distinguiria de nenhum outro objeto, e estes objetos seriam postos como objetos sem que eu pudesse dizer que sou eu que os percebo. Da mesma forma, há uma experiência do sujeito em geral sempre associada ao sujeito individual, que o preenche, por assim dizer, com suas experiências particulares: mas sem uma tal experiência eu não poderia nem me considerar a mim mesmo como um sujeito verdadeiro, isto é, como uma possibilidade que as ações de minha liberdade e os eventos de minha vida não cessam de determinar, nem entrar em relação com outros sujeitos, que existem como eu, embora com outras determinações. Há enfim uma experiência do sujeito absoluto, ao qual me experimento sempre ligado, mas sempre desigual, a respeito do qual minha própria atividade é sempre recebida, que não cessa jamais de me fornecer, e ao qual permaneço constantemente presente para estar presente a mim mesmo. Há aqui uma passividade da qual se pode dizer que é de sentido inverso em relação à da experiência externa, pois esta me arrasta sem cessar para fora de mim mesmo, ao invés de que aquela acresce sem cessar minha intimidade a mim mesmo.
8. Análise
O verdadeiro método em filosofia consiste na análise, pelo eu, de uma experiência total da qual faz parte.
Que não se diga que uma tal experiência é impossível, e que é próprio do eu permanecer sempre encerrado em seus próprios limites. Pois isso não é verdade. A maior dificuldade é, ao contrário, para a inteligência fixar os próprios limites do eu: eles são sem dúvida singularmente móveis. O próprio da experiência do eu é colocá-lo sempre em relação com coisas que são diferentes dele, com seu corpo, e por sua intermediação com corpos que não são os seus, com ideias das quais se pode dizer que ele as pensa, mas que elas não são ele, com uma atividade que o supera e que ele sofre ao mesmo tempo que a exerce. Há, portanto, formas bem diferentes de experiência; mas elas têm todas o mesmo caráter: é de colocar o eu em relação com um todo do qual faz parte, que se opõe a ele, mas no qual se inscreve, que não cessa de nutri-lo mais ainda do que limitá-lo. A mais sutil dessas experiências é a da relação de meu ato próprio e do ato mesmo que o funda, e do qual se acredita demasiadamente frequentemente que, se é exterior a mim, não é nada mais que uma coisa ou uma hipótese que não verifico. É um pouco como se eu sustentasse que não tenho nada mais que a experiência de meu corpo e que não posso ter a experiência do mundo. Mas como só apreendo meu corpo no mundo, só apreendo meu ato próprio em sua relação com um ato que me está presente, ao qual participo sempre imperfeitamente e que não é meu, embora eu receba dele o próprio poder que tenho de agir e de tornar minhas todas as espécies de experiências, até aquela que tenho dele mesmo em suas relações com o que sou. É aí sem dúvida a experiência mais alta que posso fazer, além da qual não remonto; ela constitui o cume e o coração da metafísica; depende de nós nunca esquecê-la. Todas as experiências particulares derivam dela; ela é sua chave de abóbada. Assim a própria filosofia nos descobre seu verdadeiro método que é a análise da totalidade da experiência e das relações que unem entre si suas diferentes espécies.
9. Ordem
Pela reflexão, apreendemos a atividade de nosso espírito; pelo método, a pomos em obra, a fim de instaurar uma ordem em nossos pensamentos e em nossas ações.
Tal é o cume até onde pode subir a reflexão. Depois é preciso redescender, isto é, pensar e viver. Aqui intervém o método, cujo papel é, se se pode dizer, utilizar o tempo ao invés de sofrê-lo, substituir à ordem dos eventos que se impõe a nós malgrado nós uma ordem escolhida e querida pela qual se marcam as exigências interiores de nossa consciência, mas também nossa intervenção original no mundo, isto é, nossa própria existência em sua relação com o mundo, enquanto nossa existência não é nada se não é capaz de compreendê-lo e modificá-lo. O tempo é, portanto, o instrumento ao mesmo tempo de nosso escravamento e de nossa liberação. Poder-se-ia dizer é verdade que o eu poderia se contentar, para afirmar sua independência, em perturbar a ordem do mundo por irrupções súbitas e sem ligação. É o que se observa numa liberdade que busca dar prova de si mesma em movimentos negativos e pelos quais porta testemunho no mundo contra o próprio mundo. Mas entre essas irrupções descontínuas, ela se renuncia a si mesma; ou então é preciso que se reencontre até na relação que as une. Mesmo se acredita triunfar do mundo neste ponto e no instante onde se exerce, o que não acontece, é o próprio mundo que triunfa dela em todos os outros instantes e sobre todos os outros pontos. O método é, portanto, o único meio que temos, de uma parte, de assegurar a nosso espírito uma aplicação contínua, isto é, de torná-lo mestre de si mesmo, e de lhe permitir, de outra parte, ao menos potencialmente, se igualar, como Descartes bem viu, à totalidade do mundo. Notar-se-á que o método é intelectual e voluntário ao mesmo tempo, que instaura uma ordem entre nossos pensamentos, mas que esta ordem entre nossos pensamentos não pode ser separada de uma ordem entre nossas ações, com esta reserva porém que o método não tem por objeto recriar o mundo seja pelo pensamento, seja pela ação, mas responder às solicitações do evento, isto é, resolver os problemas que nos são propostos pelas próprias circunstâncias onde estamos colocados, segundo certas regras das quais podemos sempre dispor. Enfim, convém observar que se o próprio da reflexão é nos colocar em presença de um primeiro termo onde tomamos, por assim dizer, posse da atividade de nosso espírito, o próprio do método é pô-la em obra de tal maneira que possa engendrar o conhecimento e dirigir a conduta. Assim é preciso dizer, malgrado o paradoxo, que se a reflexão é um movimento ascendente do espírito destinado a nos estabelecer na própria fonte do pensamento, o método é um movimento descendente no qual este próprio pensamento responde a todos os problemas que a existência lhe coloca.
10. Luz
O mais profundo de nós mesmos não é o ponto mais obscuro mas o ponto mais luminoso.
É um grande erro pensar que o ponto mais profundo de nós mesmos, o ponto onde nosso ser próprio se insere no ser absoluto, é também o ponto mais obscuro, como uma espécie de sol negro de onde se irradiaria toda a luz que nos esclarece. O ponto mais profundo de nós mesmos não é este problema último que recua sempre e que nunca conseguimos pôr, é este ponto perfeitamente simples e indivisível e que porém preenche tudo, segundo a palavra de Pascal, cuja presença se reencontra por toda parte e dá uma espécie de transparência ao que é, e não se descobre a nós senão em certos instantes fugitivos que buscamos vainmente reter. Vamos sempre do mais esclarecido ao menos esclarecido e do cume da consciência a todas as zonas de penumbra que a cercam. Era o sentido do movimento de Descartes no Cogito. Não temos outra saída senão sempre recomeçá-la.
11. Consciência
A filosofia nos dá consciência deste aspecto subjetivo do conhecimento que se absorve quase sempre na objetividade do conhecido.
No ato do conhecimento, o interesse do espírito se liga sempre ao objeto conhecido no qual esta atividade se absorve e desaparece. É esta atividade que é constitutiva do sujeito, que a filosofia empreende apreender. Ela não pode consegui-lo senão por uma análise de um caráter particular que, ao invés de distinguir elementos num mesmo objeto, remonta do condicionado à condição, mas sem que haja homogeneidade entre esses dois termos, e de tal maneira que a condição não apenas não possa ser destacada do condicionado, mas seja ela mesma idêntica com o próprio ato que a põe.
12. Retorno
Toda filosofia marca um retorno ao sujeito, que se descobre por um ato sempre o mesmo e sempre novo isto é sempre renascente.
Que a filosofia seja sempre um retorno ao sujeito, é o que se percebe assaz claramente, tanto por sua própria experiência filosófica, quanto pela experiência de todos os filósofos para os quais se trata menos de reconstruir o mundo, que de atingir esta própria atividade pela qual o sujeito produz seu próprio conhecimento do mundo e a inserção de sua própria vontade no mundo. Este retorno é sempre o mesmo: ele é a descoberta mais antiga, mas que deve recomeçar a todos os instantes, não apenas porque ninguém pode fazê-la em meu lugar, mas ainda porque não posso fazê-la eu mesmo de uma vez por todas, pois devo ao contrário regenerá-la em cada uma das operações particulares pelas quais me coloco um problema filosófico novo.
13. Retomada
A reflexão retoma sem cessar em mão a própria atividade da qual emana.
A reflexão é a origem da consciência que temos de nós mesmos e do mundo. E não há consciência espontânea. A espontaneidade não tem necessidade da consciência. Toda consciência é uma tomada de posse de si e de todo o real que supõe uma atividade e a retorna, por assim dizer, para ela mesma para apreendê-la. Que este retorno, que esta divisão produza a consciência, é aí talvez o verdadeiro mistério do ser. Entretanto, se é contraditório imaginar uma atividade que não seja ela mesma uma atividade do espírito, e se é impossível imaginar o espírito sem a consciência, a reflexão é menos constitutiva da consciência que de nossa própria consciência. Nossa consciência é, portanto, uma derivação do ato criador, enquanto este ato se torna nosso ato próprio no movimento da reflexão. Este movimento nunca é senão um movimento de participação; ele tem por correspondente na atividade criadora uma forma determinada de espontaneidade, que conseguimos dela separar como o correlativo mesmo da operação reflexiva que a põe como seu próprio antecedente, a fim de conquistá-la e superá-la.
14. Disposição
A reflexão pode ser considerada como surgindo do obstáculo, mas ele nunca é para ela senão uma ocasião: a reflexão é uma disposição permanente da consciência à qual o obstáculo, limitando-a, dá uma aplicação particular.
A própria palavra reflexão nos convida a considerar a reflexão como uma derivação da espontaneidade primitiva, no momento em que ela ressalta contra um obstáculo. E de fato, é assim que se pode descrever a gênese histórica da reflexão. Mas isso não nos permite conceber sua verdadeira natureza. Pois se nos contentássemos com uma tal descrição, a reflexão pareceria um fenômeno puramente mecânico. Ora, o obstáculo não produz necessariamente reflexão e acontece que a reflexão parece surgir por si mesma, sem que nenhum obstáculo possa ser discernido. O obstáculo é uma ocasião que pode fazê-la nascer, que a suscita cada vez que se aplica a um problema particular. Todavia, a reflexão é o ato pelo qual a liberdade se descobre e se constitui. Em sua forma mais perfeita, ela é uma espécie de operação permanente do eu, sempre em vigília, repliada sobre seu próprio poder; e é preciso dizer do obstáculo, não mesmo que é ele que a abala, mas que é ele que dirige sua aplicação.
15. Fonte
A reflexão é um retorno à fonte comum do entendimento e do querer.
Não se reflete propriamente sobre coisas, mas sobre esta própria atividade que conhece as coisas ou que as modifica. É esta atividade da qual a reflexão tenta se apossar para justificá-la e para regular-lhe o curso: ela supera a oposição do entendimento e do querer que só se dissociam pelo próprio objeto ao qual se aplicam, mas não por seu exercício puro. A reflexão reencontra a atividade do espírito em sua própria fonte, antes que se tenha dividido na participação para permitir ao ser finito contemplar um mundo que não criou ou transformá-lo segundo seu poder. Ela funda esta divisão das faculdades que é a própria lei da consciência; ela as põe em comunicação; ela as obriga a se determinar pelas mesmas razões.
16. Transformação
A reflexão muda o estado da consciência buscando explicá-lo.
A reflexão é o ato característico da consciência: pode-se bem dizer que supõe já a consciência, mas pertence ela mesma à consciência. Ela é o ato da consciência enquanto se aprofunda. É vão querer distinguir entre a consciência espontânea e a consciência refletida. Pois em seu ato mais elementar, a consciência já é consciência refletida. Mas se a consciência está sempre tensa entre o ato que cumpre e o objeto ao qual se aplica, a consciência em seu movimento inicial só é atenta à relação do ato com seu objeto, enquanto a reflexão num segundo movimento considera antes a relação do objeto com o ato que se lhe aplica. A relação é a mesma, mas o acento não é posto sobre o mesmo termo. Isso basta para que se possa pensar que a reflexão modifica a consciência, mas esta modificação lhe permanece interior: é a consciência que se explica a si mesma, ao invés de se absorver no efeito de sua operação.
17. Promoção
A reflexão não tem por efeito interromper a vida mas espiritualizá-la e promovê-la.
Se é evidente que a reflexão não possa ser oposta à consciência, e se ela é apenas seu aprofundamento, concorda-se em geral em opô-la à vida: pois a vida é uma espontaneidade que o próprio da reflexão seria precisamente interromper. Mas esta observação comporta numerosas reservas. Pois a reflexão vem da vida e ela é ela mesma uma forma da vida: é um mau uso da reflexão voltá-la contra a vida. É considerar a própria vida em seu movimento mais bruto, e a reflexão num estado de isolamento onde parece repelir a espontaneidade, quando ela lhe esclarece a ponta. Ora, não apenas a reflexão não pode ser destacada da vida, mas ainda ela é portada pela própria vida à qual dá um caráter espiritual, e que não cessa de afinar e promover.
18. Desprendimento
A reflexão se destaca do mundo mas para assumir o mundo permanecendo ela mesma fora do mundo.
A reflexão não se destaca ela mesma nem da consciência nem da vida, que são uma e outra modos da atividade da qual a reflexão é sem dúvida uma espécie de uso mais pessoal e mais puro. Mas se o mundo é um espetáculo, a reflexão não encontra lugar no mundo. E mesmo é preciso dizer que ela se destaca dele e permanece ela mesma fora do mundo, embora permaneça sempre em relação com o mundo. Mas é a fim de que precisamente este mundo possa ser assumido por ela, que ela possa justificá-lo seja por um ato da inteligência que lhe descubra a razão, seja por um ato do querer que o tome como matéria e que o modifique, de tal maneira que o valor possa se encarnar nele.
19. Totalidade
A reflexão envolve a totalidade do real.
Não há objeto, real ou possível, que não possa se tornar um objeto para a reflexão. A reflexão é a colocação em questão de tudo o que há de determinado no mundo, de tudo o que é realizado. Por conseguinte, ela é um retorno para uma atividade indeterminada e para um princípio de realização que deve possuir um caráter de unidade, conter nele ao mesmo tempo a potencialidade e a razão de tudo o que pode ser, e que, ao mesmo tempo, deve fundar a própria unidade do real e as relações que podemos estabelecer entre todas as suas partes. A reflexão é uma possibilitação do real que encerra nela sua unidade relacional.
20. Interioridade
A reflexão nos separa do fenômeno para nos tornar interior ao que é.
Quando se diz que a reflexão nos separa do mundo, é na medida em que este mundo pode ser considerado ele mesmo como um conjunto de objetos, isto é, de fenômenos. Mas ela não nos separa dele senão para nos fazer conhecer o ser deste fenômeno. Ora, ela pertence ela mesma ao ser no sentido de que não há nada fora do ser e que, por conseguinte, há um ser da reflexão como há um ser do próprio fenômeno, mas sobretudo neste outro sentido muito mais profundo que sendo uma atividade, ela não é ela mesma um fenômeno, mas uma potência de auto-realização: o que é o caráter essencial do próprio ser do qual ela difere apenas nisto, é que ao invés de ser uma atividade absoluta, ela supõe um dado que não pôs ela mesma, e participa desta atividade sem jamais conseguir igualá-la.